A musa passava em frente ao Veloso, na esquina da Montenegro
com a Prudente de Morais e “Olha que coisa mais linda...”. Foi lá que Vinicius
escreveu “Garota de Ipanema” na melodia de Tom. Eu então era criança, só ouvi dizer.
Anos depois, era de lei encerrar o sábado naquele botequim. Eu, o Juca e o
Sergio “Negão”, abreviado “Nêga”, quando não havia politicamente correto, só
correto.
Juca, o desenhista, era boa pinta. Um
dia botou a cabeça para fora do meu Fusca e, com fé no bigode, alvejou a menina
mais bonita na calçada da praia de Ipanema: “Ei, gatinha, vou lhe contar uma
história linda igual a você...”. Ignorado, queixou-se: “Puxa, nem me deu bola. Orgulhosa...”.
E como, ainda assim, não capturasse os olhos da presa, completou com admirável finesse: “Vai cair do orgulho e...dar
com os córneos no chão!”. Hora de
acelerar e sumir na direção do Arpoador: “Porra, Juca, vai ser grosso assim no
inferno!”.
Depois de tal proeza foi proibido de abrir a boca. Sua
missão era exibir a estampa e, na primeira flechada certeira, um dos outros falaria
pelos tres. Às vezes nem isso dava certo e só nos restava a Mãe de Todas as Cantadas
Cretinas “A senhorita não viu, por acaso, um canguruzinho amarelo que fugiu lá
de casa?”. A probabilidade de sucesso era a mesma de cravar os treze pontos na
loteria esportiva.
O Nêga cursava (modo de dizer) Engenharia e era
câmera de estúdio na TV Globo. Acabou promovido ao controle mestre, mandando as
imagens ao ar. Isso bastou para nos dar passe livre na emissora de onde, no fim
de turno, saíamos para a noitada. Certa vez apresentei minha prima mais nova ao
Nêga e combinamos um cinema. Daí por diante ele passou a divulgar para todos o
sermão que lhe passei no caminho para pegar as meninas: “Olha lá, hein! É minha
prima, viu? Não faça, não aconteça, não isse, não aquile e nem pense em
aquiloutrar!”. Eu bem sabia o pilantra que...éramos. Dizia ele que ficou a
noite inteira mudo, com as mãos para trás.
Por volta dos vinte anos de idade morávamos em
Botafogo, a menos de duzentos metros uns dos outros. As raras namoradas
“firmes” eram recambiadas bem cedo, por ordem de pais zelosos, desconfiados do
que lhes parecia um bando de celerados (logo nós, tutti buona gente!). Alforriados, rumávamos para Ipanema, ocasionalmente
rebocando amigas ou irmãs de alguém, portadoras de sinais de “Mantenha
distância”. Às vezes achegavam-se respeitáveis cavalheiros, como o Bode, o
Campista, o Piu-Piu e outras figuraças. Noutras, a sessão começava cedo com
nomes mais comuns, como o Paul, o Miguel, o Zé Roberto, ou o Martinho e seu
irmão Paulinho (que, na época, passava o dia inteiro deitado no sofá, fumando um
cigarro atrás do outro e, incrivelmente, metamorfoseou-se no guru de malhação Paulo
“Cintura”). Gastávamos o sábado gravando imitações grotescas de anúncios de
rádio ou televisão, ou inventando o roteiro de um filme, felizmente abandonado
antes de qualquer imagem.
Esticar o sábado à noite no Veloso era obrigatório e
a pauta oficial era jogar conversa fora, numa das mesas do Zé. Grande Zé! Nem
alto nem baixo, nem magro nem gordo, um pouco calvo, meio sério, dois terços gaiato,
boa praça inteiro. Domingo era para dormir até tarde, então o tempo não passava.
Nenhum de nós bebia muito, a grana era curta e nos limitava, em geral, a umas duas
caipirinhas, ou uns tres chopes, consumidos lentamente e diluídos em tira-gosto.
Mesmo assim éramos bem-vindos, a noite toda, num tempo de menos pressa, menos
ganância. O Zé ficava esperto e, às vezes, perguntava “Não prefere uma
coca-cola?”. Lá pelas tantas, já de tamancos, jogava desinfetante e passava o
esfregão no chão. “Não se incomodem comigo”. Botávamos os pés nas cadeiras
vazias e ficávamos lá até acabar a limpeza.
Pouco antes do fim do expediente, o garçom avisava:
“Tá na hora de fechar, vai a saideira?”. Um dia alguém falou: “Traz qualquer
coisa”. Ele voltou com um copo de chope cheio dum líquido cor de tamarindo, uma
casquinha de limão e duas pedras de gelo boiando. “Que diabo é isso?”. “O que
vocês pediram. Por conta da casa”. O mais corajoso deu um gole. “Muito bom. Mas
o que é?”. E ele “Sei lá, misturei o que tinha em quatro garrafas quase vazias que
estavam na frente da prateleira. Vai manso, viu?”. Era qualquer coisa mesmo. Passou
na roda feito cachimbo da paz. O Zé poderia ser premiado por aquilo em algum
concurso de drinques, se ao menos soubesse o quanto do que tinha posto no copo.
Naquela esquina era tudo amor e paz. Brigas, raríssimas.
Só me lembro de uma, que começou pequena no fundo do bar e virou pancadaria. Garçons
e cozinheiros tentavam apartar, mas a coisa estava ficando feia e a turma,
junto com outros fregueses, já se abrigava prudentemente na calçada do outro
lado da...Prudente. Ironizavam a confusão à distância até darem por minha falta.
Medraram por pouco tempo. Logo fui aplaudido ao atravessar a rua carregando tres
copos. “Salvei os chopes”.
Havia, é claro, notórios cachaceiros que moravam por
perto e tinham mesas cativas. Um deles era o Cabelinho, patrimônio de Ipanema. Todo
dia lá e jamais alguém o viu sóbrio. E sempre aparecia algum desconhecido
solitário. Numa noite, na mesa ao lado, um sessentão só largava do uísque para
rir das besteiras que dizíamos. O Zé apontou “Aquele ali parece gente fina, mas
tá pra cair. Alguém vai ter que levar ele em casa”. “Ele não mora por aqui?”.
“Nunca vi, ele veio de carro”.
O sujeito entrou na conversa: “Vocês são estudantes? Meu
filho também, está quase se formando. É um gozador igualzinho a vocês”. Seguiu-se
nonsense e gargalhadas até que o
homem resolveu partir. Levantou-se e congelou “Não dá”. Sentou de novo. E o Zé
“Eu avisei, alguém tem de dirigir, senão ele não chega”. Ele concordou “É
mesmo, vocês me ajudam?”. Ressabiados, sem saber direito no que nos metíamos, confabulamos
e concluímos estar em número suficiente para enfrentar imprevistos. “Cadê o
carro?”. Ele apontou um Mercedes esporte, último tipo, branco, reluzente, do
outro lado da Montenegro. O mais afoito arregalou os olhos e gritou: “Eu
dirijo!”. E fomos, uns cinco ou seis rapazes, duas ou tres moças, e mais o
velhote em tres automóveis, um dos quais o carrão pilotado, uma vez na vida, por
um eufórico Zé Roberto.
Chegamos a um edifício chique, com um baita jardim na
frente, bem no início da Praia de Botafogo. Após rápido diálogo com o morador, o
porteiro fez sinal para entrarmos. A esta altura alguns beiravam o pânico, mas
todos estavam curiosos. Outro porteiro abriu, solenemente, as portas de todos os automóveis e convidou-nos
a tomar o elevador. No topo, depois de várias tentativas, o cidadão conseguiu domar
a fechadura e disse: “Entrem, vocês me fizeram rir muito, vamos fazer um
brinde!”.
O apartamento tinha um salão gigantesco com múltiplos
ambientes, uma varanda de cinema, estatuetas, quadros raros nas paredes, um monte
de suites, lavabos e banheiros, esses últimos rapidamente explorados, pois deixáramos
o Veloso sem a visita protocolar ao cubículo. Uma copeira engomadinha materializou-se
com gelo, uísque, refrigerantes e salgadinhos, enquanto nosso anfitrião acionava
um jazz de primeira. Perguntamos em
que trabalhava. “Vivo de renda”, rebatido com a piada inevitável “...confecção?”.
O coroa quase engasgou de rir. Daí em diante contou histórias, hilariantes ou horripilantes,
de gente bacana e famosa. Aproveitou a excursão das meninas ao banheiro para
piadas escabrosas. E repetiu várias vezes que fazia tempo não achava tanta
graça em nada.
Pelas quatro da manhã chegou o filho. Deu um beijo na
testa do pai e um oi geral, serviu-se do uísque e juntou-se ao grupo como se
aquilo fosse rotina. Devia ser. Aos poucos dispensamos a bebida, e foi quando o
sol nasceu. Apreciamos o clarear do dia naquele varandão, num silêncio
respeitoso, ao som de John Coltrane. Enquanto isso, a empregada arrumou uma
mesa enorme e serviu café da manhã. Malgrado o risco saimos de lá, depois das
oito, incólumes e incrédulos, certos de que uma aventura daquelas, com final
feliz, só podia começar no Veloso.
Mas uma noite, quando chegamos ao bar, soubemos que o
Zé tinha morrido, afogado numa praia em Niterói. Com tristeza, cada um de nós
derramou, no chão, um chorinho de bebida e fizemos um brinde para nos despedir do
“nosso” garçom. Qualquer coisa, nunca mais.
O tempo nos dispersou. Só vi o Juca mais uma vez,
rapidamente, ainda morando em Botafogo. O Nêga emigrou para a Espanha. De vez
em quando, trocamos notícias e besteiras clássicas por correio eletrônico.
Mudamos muito e nada. “Garota de Ipanema”, já naquela época, era emblema do Rio
de Janeiro. Vinicius nos deixou, a todos, órfãos de seus poemas, das letras de
música que escreveu e das que não escreveu. Porém, assim como os mais velhos,
que foram testemunhas da garota, nunca precisaremos de mementos para lembrar da
Ipanema dos anos setenta.
Mas, como se sabe, donos e mandatários têm o costume
de gravar memórias em placas e reduzir pessoas a logradouros, para soi disant homenageá-las, no fundo com o
propósito de se promover ao descerrar a placa ou cortar a fita. E assim fizeram
com aqueles ícones de juventudes, alegrias e emoções. O Veloso mudou de nome e
de caráter para Garota de Ipanema, no
mesmo endereço, que um prefeito qualquer resolveu rebatizar de esquina da rua Vinicius de Moraes com a Prudente.
A canção não precisava virar bar, já era hino e
ganhara o mundo. O poeta merecia mais, ele não é só rua. Também é praça, praia,
bairro, cidade, país inteiro. E - supremo disparate - para perpetuar a garota
que passava por Vinicius, acabaram por perpetrar “uma” Vinicius que passa por “um”
Garota. Pois eu não abro mão de enquadrar minhas lembranças nos cenários
originais. Aqui, portanto, decreto que o bar continuará Veloso. A rua, para
sempre Montenegro.
Rafael Linden
Oi Rafa, parabéns pelo blog! Os textos estão ótimos, delicioso de ler. Este em especial me emocionou: eu estava lá ! O drink " qualquer coisa" passou a fazer parte do nosso cardápio, e apesar de não beber nada naquela época, me embriagava de tanta alegria e camaradagem. Sempre que passo em frente ao edifício chique da Praia de Botafogo lembro daquela noite. Bons tempos! Quem se arriscaria agora, mesmo bebum, a entregar o carro e abrir a casa para um bando de jovens e ainda oferecer whisky? Vou ficar esperando você nos presentear com uma crônica em homenagem ao kibe cru com muita cebola do Beco da Fome...Bjs e parabéns! Miriam Pirim
ResponderExcluirPirim, que bom te "ver" por aqui! Bem lembrado, o Beco e o Oásis do Beduíno, mais o Cervantes. Circuito gastronômico que cabia no nosso bolso, né? Um dia desses, quem sabe baixa uma nova inspiração nostálgica e sai uma crônica dessas. Beijo grande
ExcluirR
Olá Rafael.
ResponderExcluirPost divulgado .
Até mais
Valeu!
ResponderExcluirabs
R
Maravilhoso. Um abraço, Rico
ResponderExcluirValeu, Rico
ExcluirLinden, você é ótimo. Abraço. Colli.
ResponderExcluirObrigado, Dr. Colli. É um prazer receber sua visita.
ExcluirAbraços
Rafael
Senti-me vivendo a sua história! Delícia!
ResponderExcluir[xxx] Doris
Obrigado, Doris!
Excluirbeijos
Rafael
Uma preciosidade Rafa!
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