Além da infinita sabedoria oriunda de uma experiência de vida exemplar,
a idade costuma nos brindar com um rico cardápio de achaques, entre os quais a
dor nas costas. Quem já dobrou a curva dos sessenta e nunca passou por isso,
que atire a primeira pedra. Haverá, naturalmente, alguma dificuldade em pegar a
pedra no chão, por causa de…dor nas costas.
Muitos acham normal uma dorzinha de vez em quando, ao se levantarem das
respectivas cadeiras com as mãos nos quadris, o pescoço espichado, uma careta e
um grunhido. Mas há os que se sabem portadores de uma das maiores pragas da
modernidade – a hérnia de disco. As vértebras da nossa coluna são separadas
umas das outras por colchõezinhos chamados discos intervertebrais, que amortecem o impacto sobre aqueles ossos. Tais discos podem espichar para os lados ou na
vertical - essas deformações são as hérnias. Isso pode resultar em compressão
de raizes nervosas e, entre outras consequências desagradáveis, causar uma dor
lancinante. Vosso amado cronista que o diga, com seu histórico de três crises na
última década.
Essa maravilha é uma daquelas coisas que nem o leitor rabugento consegue
desprezar, pois hérnias de disco são muito comuns e podem afetar até oitenta
por cento de certas populações. Dor intensa e outros sinais neurológicos são
menos frequentes, mas é bom que a galera saiba que tem muita hérnia de disco silenciosa
por aí, só esperando uma boa oportunidade para derrubar o cidadão. Há
controvérsias sobre a contribuição da dor nas costas para os índices de
deficiência física no mundo, mas pelo menos um grupo de médicos australianos
estimou recentemente que se trata da causa mais frequente de incapacidade para
o trabalho em escala mundial.
Veterinários contam histórias tristes de cães com hérnia de disco, mas
quem frequenta zoológicos ou assiste o Discovery
Channel vê a macacada se contorcendo alegremente, sem queixas. Macaco com
hérnia de disco deve ser coisa muito rara. Então por que nós, particularmente a
gentil senhora que nos lê, merecemos esta distinção? Em boa parte é consequência
de mazelas típicas da modernidade, como maus hábitos posturais ou atividades
físicas inadequadas. Mas uma predisposição à hérnia de disco, infelizmente,
parece estar associada a uma das principais conquistas evolutivas do homem – o
bipedalismo.
Bipedalismo é a forma de locomoção sobre duas pernas. Sim, madame, eu
sei que sua Shih Tzu fica bonitinha pedindo biscoito equilibrada nas
patinhas traseiras, mas nosso assunto é o chamado bipedalismo habitual, aquele
que, com exceção dos cangurus, é característico dos hominínios, ou seja, os
humanos modernos e seus ancestrais bípedes. As descobertas arqueológicas indicam
que a capacidade de se locomover em duas pernas surgiu há pelo menos quatro, e
talvez, sete milhões de anos, quando os hominínios começaram a divergir evolutivamente
dos ancestrais dos modernos chimpanzés.
A adaptação à locomoção bípede é
associada a pressões evolutivas, por exemplo mudanças no ambiente, e ofereceu
vantagens tais como a facilidade de carregar armas ou ferramentas durante a
locomoção. Como nem mesmo aquele velho chato, que fica reclamando de nossas
crônicas o tempo todo, esteve presente aos acontecimentos dos últimos milhões
de anos, os cientistas precisam deduzir a forma de locomoção de espécies ancestrais
a partir de características do esqueleto de fósseis, tais como os detalhes do crânio, curvatura da coluna vertebral, tamanho, formato e posição relativa de
ossos dos braços, pernas e pés. A chamada osteologia é, portanto, um ramo da
anatomia importantíssimo para estudar a evolução do homem.
E a hérnia de disco, por acaso foi esquecida nos devaneios do texto? De
forma alguma, porque esta crônica foi motivada pela publicação, na revista BMC Evolutionary Biology, de um artigo capitaneado
pela Doutora Kimberly Plomp, do grupo de Mark Collard, da Simon Fraser University, que fica no sudoeste do Canadá. Já havia
indícios de que o formato das vértebras influencia a chance de desenvolver
hérnia de disco. Os cientistas se perguntavam, no entanto, qual a causa dessa
influência. A hipótese que Collard e seus colegas queriam examinar era de que
o bipedalismo estaria por trás disso.
Resolveram, então, comparar detalhadamente as vértebras de humanos com
ou sem hérnia de disco, com as vértebras de chimpanzés, que andam habitualmente
de quatro, e de orangotangos, que se locomovem preferencialmente pendurados em
galhos de árvores. Por conta da divergência progressiva na evolução de
diferentes espécies de primatas, humanos modernos estão mais próximos dos
chimpanzés do que dos orangotangos modernos. A idéia foi de que, se o
bipedalismo está por trás do efeito do formato das vértebras, duas coisas
deviam ocorrer. Primeiro, as vértebras das três espécies deviam ser diferentes,
com as humanas mais parecidas com as de chimpanzés. Segundo, os detalhes das
vértebras de humanos portadores de hérnias de disco deveriam ser ainda mais
semelhantes às vértebras dos chimpanzés do que no caso das vértebras de humanos
sadios, livres de hérnias.
Os cientistas escolheram para o estudo coleções de vértebras da
Universidade de Durham, na Inglaterra, e dos Museus de História Natural de
Washington e de Nova Iorque, nos EUA. As humanas eram de coleções arqueológicas
do período medieval, portanto livres dos vícios posturais e motores do mundo
moderno. Cerca de metade das cento e quatorze vértebras humanas mostravam um
sinal chamado “nódulo de Schmorl", que é indicativo de hérnia de disco. Do exame
detalhado de mais de duzentas vértebras, usando as técnicas da chamada
morfometria geométrica, os pesquisadores chegaram a duas conclusões. Primeiro,
de fato os detalhes anatômicos das vértebras são distintos entre humanos, chimpanzés
e orangotangos. Segundo, assim como previsto, as vértebras humanas com sinal de
hérnia de disco tem formato mais assemelhado às vértebras dos chimpanzés do que
as vértebras humanas sem sinal de hérnia.
Visto de outro ângulo, as hérnias ocorreram em humanos bípedes cujas
vértebras são parecidas com macacos quadrúpedes, enquanto humanos com vértebras
diferentes parecem menos propensos a sofrer hérnias de disco! A interpretação
dos cientistas foi de que, apesar de milhões de anos de evolução, uma parte da
população humana ainda mantém vértebras com formato bom para quadrúpedes, porém
inadequado para a locomoção bípede. Para esses, coitados, teria sido melhor continuar
de quatro…Presumivelmente, os felizardos livres de hérnias de disco já tem
vértebras, digamos, mais evoluídas e, por isso, mais adequadas ao bipedalismo.
Os cientistas não cabem em si de felicidade, brandindo esse trabalho
como uma prova adicional da importância da Antropologia Evolutiva como
ferramenta para entender condições médicas. Também arriscaram a idéia de que a aplicação,
em tomografias computadorizadas, da morfometria geométrica das vértebras pode
servir para o ortopedista prever a chance de hérnia de disco e, assim, prescrever
medidas preventivas ao paciente. Já nossa mente pervertida, cá no telhado, sugere
que, daqui para diante, a galera que usa as redes sociais para se exibir em
rituais de sedução pré-acasalamento semelhantes à abertura da cauda do pavão
macho, passe a exibir as tomografias computadorizadas das suas vértebras
lombares, a fim de conseguir parceiros com vértebras semelhantes que reduzam as
chances de hérnias de disco na prole…
Rafael Linden
Quando alguém me diz que tem a hérnia de disco eu fico imaginando um disco na hérnia... e me perguntando o que é uma hérnia! =D
ResponderExcluirMetade de nós humanos então têm vértebras de chipanzé, e o que mais?...
ResponderExcluirMetade de nós humanos então têm vértebras de chipanzé, e o que mais?...
ResponderExcluirMuita coisa. E faltam aos humanos algumas coisas boas que parecem ter sido perdidas...
ExcluirAssim como os cientistas, a felicidade não cabe em mim! hushus <3
ResponderExcluir:-)
ExcluirA hérnia mais sofisticada que já ouvi falar...
ResponderExcluirE dolorosa, acredite¡
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