Dizem que era lenda, mas sou testemunha. O jacaré que vivia no porão do
velho prédio da Faculdade de Medicina, na Praia Vermelha, existiu.
Não nasceu lá, é claro.
Foi trazido do Pantanal, ainda filhote, pelo eminente cientista Aristides Leão
para estudar seu cérebro. Seu, dele, jacaré. Isso foi no início dos anos 70,
portanto não perguntem pela licença do IBAMA, que só foi fundado quase vinte
anos depois. O fato é que o réptil escafedeu-se da jaula em que estava preso
nas proximidades de seu laboratório. Seu, dele, Professor Leão. Jacareziou-se
no porão do prédio e várias expedições de captura foram inúteis.
Como sói acontecer,
reinava o deboche. "Ei, quer dizer que o leão perdeu o jacaré? Chama o Jim
das Selvas...". Quem acreditava tentava explicar: "Não é um
jacarééééé, é um filhote, é de verdade, era para pesquisa, não, não mordeu
ninguém, só sumiu, outro dia alguém deu com ele numa das entradas do porão e os
dois fugiram assustados, cada qual para um lado, não, eu nunca vi, mas é o que
se diz".
Até que, um dia, um
técnico de laboratório que, além de habilidoso, era valente o bastante para
encarar um jacaré, foi chamado por volta de meio dia: "- Raymundo, vem depressa
que o bicho está lá fora pertinho do alojamento!!". E lá veio o intimorato
Mestre Raymundo Bernardes, carregando um pedaço de pau, um saco de aniagem e dois
capangas, um dos quais Roberto que, assim como o Mestre, era meu colega de
laboratório no Instituto de Biofísica. O alojamento da Casa do Estudante ficava
encostado no Morro da Urca, atrás da Faculdade e separado desta por uma
ruazinha estreita na qual alguns carros ficavam estacionados. Era visível de
dentro do bar do “Seu” Agostinho, onde arriscávamos diàriamente nossa saúde engolindo
os artefatos fumegantes e irreconhecíveis perpetrados na cozinha do boteco. E
lá estava eu almoçando quando a comitiva passou garbosamente por dentro do
pé-sujo, entre os olhares irônicos da rapaziada, e saiu pela porta dos fundos
rumo ao jacaré.
Foi um frisson. Espremiam-se
todos na porta do bar para assistir à caçada. Não se via nada, porque o
alojamento ficava uns cinco metros acima do térreo da Faculdade e tinha um
jardim avarandado na frente, que tapava o lugar onde fora visto o jacaré.
Raymundo e sua tropa sumiram ali e alguns mais corajosos aproximaram-se um
pouquinho para ver, mas naquele dia a estudantada súbitamente passou a crer e,
prudentemente, a temer o jacaré. E já se dizia que o bicho estava enorme, mais
de dois metros, tinha que chamar a polícia, não a polícia não, que eles iam
sentar a porrada era na gente mesmo, como de costume na época.
Depois de uns vinte
minutos nossos heróis reapareceram no topo do avarandado, segurando o saco de
aniagem com a fera dentro. A galera continuava ansiosa porém, aos poucos,
percebeu que o jacaré, em todo o tempo que passou sumido, continuava um
jacarezinho. Mas, seja como for, cheio de dentes. Quer dizer, tudo isso imaginado,
pois só restava, a nós covardes que ficamos a uma distância segura, advinhar o
bicho ensacado, firmemente imobilizado por seus captores. Outra força de
expressão, pois quem segurava no duro era o Mestre Raymundo. Os outros dois
faziam figuração, pálidos e contidos apenas pela expectativa de que a mulherada
estivesse a suspirar cá embaixo.
De repente, deu-se a
rabanada. O jacaré, num último esforço em busca da liberdade, chacoalhou o
rabo, ou o que parecia se-lo por baixo da aniagem, uma só vez. Mas foi o
bastante para meu intrépido amigo Roberto levar o maior susto de sua vida e, adiós
muchachos, saltar do avarandado por cima de um fusca, aterrissando - sabe-se lá
de que jeito - incólume no asfalto da ruazinha. Foi delirantemente aplaudido
pela platéia, que perdeu o jacaré mas ganhou outro assunto. Roberto, um dos
líderes estudantis da Faculdade, era muito popular e respeitado por seu
ativismo no tempo da ditadura. Infelizmente, o susto arranhou um pouco seu
prestígio. Mestre Raymundo, às gargalhadas, continuou segurando o jacaré, sem
ajuda de ninguém.
E assim terminou a
história do jacaré do Professor Aristides. Pensando bem, não sei que fim levou
o bicho depois deste episódio rocambolesco. Eu mesmo nunca o vi em pessoa, mas
presenciei a rabanada do saco de aniagem e sua consequência e, por isso, dou fé
e registro como verídica esta coisa toda.
Rafael Linden
Bom dia Dr. Rafael. Nossas vidas são repletas de muitas surpresas
ResponderExcluirtambém. Mesmo sabendo apenas de parte dos fatos aqui relatados, não posso deixar de enaltecer sua brilhante e hilariante narrativa. (Rindo a
té hoje😂..). Sempre acreditei na presença do ilustre residente a partir dos relatos do meu amado Pai. Saudades. Mas não poderia ter sido tão perfeita se fosse relatada de outra maneira. Forte abraço. Carlos Eduardo Bernardes.
Bom dia. Quanto ao personagem secundário (Dr. Roberto) prefiro não fazer nenhum comentários 🤔. Apenas se tiverem contato com ele encaminhar um grande abraço também. Carlos Eduardo Bernardes.
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