Faltava
pouco para a mudança da Faculdade para a Ilha do Fundão, o que explicava um
certo desleixo com a manutenção do velho prédio. Os auditórios, salas de aulas
práticas e laboratórios decaíam a olhos vistos. As instalações elétricas eram
um escândalo. Debaixo de uma escada um ventilador, ligado o dia todo, refrescava
um quadro de força literalmente em brasa. Os bancos da Pracinha Vermelha, como
era conhecido o centro do jardim interno, estavam quebrados e mal aguentavam os
numerosos alunos que ali se aglomeravam nos convescotes diários.
A
administração desdenhava do edifício, premida pela crônica falta de recursos
agravada pela iminência do abandono final. Um homem, porém, tinha a missão de
cuidar daquele prédio quando as portas se fechavam: Aguiar, o caseiro. Moreno,
baixinho, sempre com a barba por fazer encimada por óculos de fundo de garrafa,
todos os dias abria, de manhã cedo, e fechava, no fim da tarde, o pesado portão
da entrada lateral, que ficava de frente para o bandejão e por onde transitavam
os frequentadores da Faculdade.
Durante
o dia Aguiar passeava pelos corredores, zelando pelo patrimônio, dando
jeitinhos e quebrando galhos, em meio a conversas eventuais com a rapaziada. De
noite, vez por outra a campainha o convocava a abrir o portão para saída ou
entrada de algum cientista ou estudante que tinha o que fazer nos laboratórios
de pesquisa, poucos então, situados no interior do prédio. Era meu caso,
estagiário que era do Instituto de Biofísica e membro da turma do sereno de um
projeto no qual minhas atividades começavam por volta das onze da noite e
terminavam lá pelas seis da manhã. Durante algum tempo Aguiar abria e fechava o
portão para mim. Depois, subi na vida e passei a integrar um seleto grupo que
tinha a chave e, assim, podia entrar e sair livremente sem importunar o
caseiro. Junto comigo, no turno da noite, trabalhava um argentino de nome
aristocrático, Francisco Maria de Monastério, que cursava a pós-graduação. Para
os íntimos era o Chico.
Nosso
último personagem era o Shazam: um vira-latas preto que fora salvo de um
atropelamento pelos monitores de Técnica Operatória, os quais cuidaram dos
ferimentos, consertaram-lhe mais ou menos a pata quebrada e arranjaram-lhe uma
caixa de papelão onde convalesceu e voltou a fazer suas cachorrices, para orgulho
dos aprendizes de cirurgião e gáudio dos calouros. Esperto, Shazam achou mais
seguro ficar por ali mesmo em vez de arriscar-se em meio ao trânsito das
adjacências. Aguiar, que alimentara o cão durante o pós-operatório, acabou por
adotá-lo. Daí para a frente, aonde ia o Aguiar lá ia o Shazam, manquejando, alguns
passos atrás, tal qual uma obediente esposa japonesa. O cão não era lá muito
útil e ignoro o que faria frente a algum ladrão, mas completava o quadro. Raramente
se incomodava quando algum conhecido, como eu mesmo, entrava no prédio tarde da
noite. Aproximava-se, farejava a identidade do visitante, registrava a
ocorrência nos miolos e voltava para a porta da moradia do Aguiar. Já com o
Chico era diferente.
Antes
de minha chegada ao laboratório, o argentino já estava lá e trabalhava até altas
horas. Conta-se que, certa noite, pouco depois de recuperar-se do atropelamento,
Shazam deu de cara com o Chico num corredor deserto da Faculdade. Nacionalista
convicto, o cão partiu para a briga disposto a vingar a última bordoada que o zagueiro
portenho Labruña dera no Maurinho, ponta-direita da seleção canarinho na Copa Roca
de 1957. E deu-se mal. Chico incorporou o truculento beque central rubro-negro
Tomires e tascou-lhe um pontapé nos quartos, que atirou o cão a uma distância
segura. Pênalti indiscutível, que só o juiz não viu.
A
partir deste dia, Shazam não podia farejar o Chico. Desandava a latir furiosamente
e, por valentia ou imprudência, atacava de novo. O fato é que, invariavelmente,
a trilha sonora da entrada do argentino no prédio da Praia Vermelha consistia
de latidos, grunhidos e palavrões, esses últimos em castelhano, acompanhados de
correrias grotescas e cenas lamentáveis de pugilato homem-cão. Eu preferia
entrar sòzinho.
Depois
da terceira ou quarta vez, Aguiar desistiu de sair de casa em disparada, de
pijama, para ver o que estava acontecendo. Resignou-se e, que se dane, deixou
que Shazam e Chico resolvessem sua pendenga por eles mesmos.
E
assim era a rotina, ao menos uma noite por semana, no velho casarão da Praia
Vermelha. Enquanto Universidades no primeiro mundo tinham uma brigada de
segurança para proteger o patrimônio, nós tínhamos Aguiar e o Shazam.
Rafael Linden
No primeiro mundo não existem (ainda) brigadas de seguranças contra argentinos. O sistema Shazan é mais sofisticado.
ResponderExcluirO sistema Shazam nos levará ao primeiro mundo...
ResponderExcluir:
-)