Depois que, em pleno domingo de
Carnaval, observamos o locutor de um noticiário de televisão perder o rebolado
quando foi ao ar uma reportagem sobre um concurso de beijo no Peru, a madame,
ruborizada, acha que seu cronista predileto perdeu a compostura. Ledo engano. O Peru, no caso, é o país andino. O
pinto em epígrafe é um filhote de galinha recém saído do ovo. E não conta por
sua importância, mas porque detecta quantidades distintas. E pinto em epígrafe
não é nada do que o Juquinha está pensando. Queiram, por gentileza, retomar o
respeito necessário e suficiente para apreciar a crônica de hoje, que trata de Ciência
séria.
A pesquisa foi feita na Universidade
de Pádua, na Itália, e publicada na respeitada revista Science pela equipe das Doutoras Rosa Rugani e Lucia Regolin. Elas
vem há cerca de dez anos estudando o conceito de “linha numérica mental” (que
se abrevia MNL), a qual descreve a tendência observada em humanos no Ocidente, de representar números em
escala crescente ao longo de uma linha horizontal da esquerda para a direita.
A MNL se manifesta, entre outras coisas, quando uma pessoa responde mais
rapidamente a números pequenos quando o alvo da resposta está à sua esquerda do
que quando está à direita, e mais rápido a números grandes quando o alvo da
resposta está à sua direita do que quando está à esquerda.
Esta tendência pode ser modificada
por fatores culturais, como em pessoas alfabetizadas na língua árabe, que
apresentam tendência de resposta espacial inversa, ou em israelenses fluentes em hebraico e inglês, que não mostram
essa assimetria. No entanto, ainda não se sabia o quanto da MNL é programado
biologicamente, em comparação ao que é condicionado pela cultura. Foi isso que
a equipe italiana tentou esclarecer, testando a capacidade de pintos recém-nascidos
responderem a quantidades pequenas ou grandes de acordo com uma “linha numérica
mental”.
Antes que os mais afoitos concluam
que um bando de malucos andou obrigando aves a resolverem equações
diferenciais, reitero que o estudo não apenas é sério, mas foi feito com
experimentos de uma simplicidade invejável, que só surge na cabeça de cientistas
inteligentes. Pois construiram uma arena na qual podiam colocar um pintinho de
cada vez, e treiná-lo a procurar uma recompensa atrás de um painel de plástico
branco, no qual havia desenhos de um certo número de quadradinhos pretos. A
recompensa era um bicho-de-farinha, uma larva de besouro que é um verdadeiro
pitéu para muitos animais de estimação. Algo assim como um bombom de chocolate
Godiva para a gentil leitora. Uma vez treinados, os pintinhos eram de novo
colocados na arena, agora com dois painéis idênticos, um à esquerda e outro à
direita, contendo em ambos um número menor ou maior do que o número de
quadradinhos usado no treino. E a pergunta era apenas para que lado o pintinho
se dirigia inicialmente para procurar a recompensa que, diga-se de passagem, durante
os testes não estava atrás de nenhum dos painéis.
Os resultados foram porretas. Em mais
de setenta por cento dos casos, quando havia menos quadradinhos do que no
treino os pintinhos escolhiam procurar a larva do lado esquerdo, enquanto o
lado direito era o escolhido quando havia mais quadradinhos do que no treino.
Ou seja, as avezinhas conseguiam, sem dificuldade, diferenciar números maiores
de menores. Pode sentar de novo, rabugento, porque a equipe italiana teve todo
o cuidado de fazer uma série de testes para eliminar outras possibilidades,
devidamente descritos num baita anexo que acompanha o trabalho publicado. Ou
seja, pelo menos por enquanto, temos de admitir que pintinhos recém-saídos do
ovo tem “linha numérica mental” e, apesar de todo o respeito que tenho, com
perdão da má palavra, pelas galinhas que são as mães deles, custo a crer que isso
possa ser atribuído a fatores culturais.
Já se sabia que várias espécies
animais são capazes de diferenciar grandezas distintas, mas esse trabalho
sugere que a capacidade de mapear quantidades crescentes na dimensão horizontal
do espaço, antes tida como exclusivamente humana, também existe em aves que
acabaram de sair do ovo. As cientistas italianas, assim como um comentarista da
revista Science que fez uma resenha
do trabalho, apostam que a linha numérica mental, embora sujeita a modificações
de natureza cultural, pode ser uma manifestação essencialmente biológica
associada às assimetrias cerebrais. Essas são diferentes especializações entre
as duas metades – direita e esquerda - do cérebro, as quais se refletem em
assimetrias funcionais como, por exemplo, na destreza manual.
Seja como for, da próxima vez que o
prezadíssimo leitor for alimentar sua criação de galinhas, frangos ou pintos,
lembre-se de que cada um deles pode estar perfeitamente ciente de que o senhor
sempre dá mais milho para alguns, em detrimento dos demais. Eles não conhecem
números exatos, mas percebem quando estão sendo roubados. O mesmo conselho vale
para criaturas – algumas mais, outras menos distintas - que distribuem o que há
para distribuir lá na capital federal.
Rafael Linden
Espetacularrrrr Rafael...
ResponderExcluirObrigado, Rodrigo. Volte sempre.
ExcluirR
Muito bom, Rafael!!!
ResponderExcluirObrigado, Anônimo(a)!
ExcluirR