Fui instigado por uma colega(1)
a comentar, em um parágrafo, uma crônica de Affonso Romano de Sant’Anna. Ora
essa, como se eu conseguisse me conter em um parágrafo ao ler um poeta e
cronista de tamanha estatura...
O escritor publicou “Certas
incertezas”(2) em 2007, motivado pela concessão do prêmio
Santilli-Galileu ao físico portugues José Croca, professor da Universidade de
Lisboa, por seu trabalho em mecânica quântica. Não me arrisco a analisar as
teorias de Croca, o significado real do tal prêmio, nem a versão jornalística
da conquista científica atribuida ao físico em uma reportagem pra lá de
esquisita no Jornal das Letras, tudo isso já comentado por outrem com estofo
para tal(3). Daqui em diante, este texto será uma crônica da crônica.
Uma “metacrônica”.
Affonso comenta, em grande estilo, a suposta
derrocada do “princípio da incerteza”, de Werner Heisenberg. Esse
princípio se refere à imprecisão inerente a certas medidas físicas, causada pela
necessidade de interferir no objeto para executar a medição. Esqueçamos a
física, pensemos na incerteza. O cronista se alegra com a perspectiva de entrarmos
em uma nova era, livre da barreira que a incerteza impõe ao conhecimento.
Simpatizo com o autor no exorcismo de
certos demônios filosóficos, literários e artísticos, gerados pelo
contorcionismo intelectual de muitos que celebraram uma era de incertezas
baseando-se na mecânica quântica para justificar toda sorte de desvarios. Mas
daí a desejar que algo ou alguém nos livre da incerteza vai uma distância
considerável. Por absurdo, queremos de fato que o mundo retorne a uma era de
certezas absolutas? E é aí que meu próprio malabarismo mental encaixa um
dramaturgo carioca, por acaso nascido no mesmo ano que o cientista portugues.
Clovis Levi escreveu junto com Tania
Pacheco, em 1975, a peça “Se chovesse vocês estragavam todos”, pela qual ganhou
o prêmio Governador do Estado de São Paulo. Comparação pobre, porém limpinha,
afinal Croca e Levi são dois criativos premiados. E aí acaba a analogia, pois a
peça é uma comédia crítica do autoritarismo, das restrições à liberdade e da
imposição da mesmice. Uma das cenas mais marcantes é aquela em que a
professora, que vi no Teatro Opinião, em 1976, interpretada pela então
estreante Priscila Camargo, explica com ar angelical os malefícios da dúvida.
Entre outras façanhas, um diálogo com o aluno representado por Tião d’Ávila, o
leva a equacionar a dúvida com o passado. Na peça, como na vida, livrar-se
de dúvidas conduz, naturalmente, ao conformismo.
Pois aí está. O fim da dúvida, o fim
da incerteza. Devemos desejá-lo? Em seu poema “Além de mim”(4), Affonso
Romano confessa desespero por não compreender certos conceitos e sinais. Não
carece. Por exemplo, professores e alunos de instituições de pesquisa
científica não apenas convivem pacificamente com problemas não resolvidos, como
garimpam novas incertezas para lhes servir de objeto de investigação. Portanto,
não se afligem. Ao contrário, cultivam a dúvida. Certezas, eventualmente
obtidas após longa e penosa luta contra a couraça que protege os segredos da
Natureza, de certa forma esgotam o impulso da aventura humana, que consiste em
enfrentar enigmas, resolve-los quando possível e, sem desespero, apreciá-los
enquanto envoltos no manto da incerteza.
Nada fascina mais do que o mistério e
a oportunidade de desvendá-lo. Ou tentar. Não são as certezas que movem a
humanidade. Aquelas apenas nos fazem pendulear. O que nos impele é a incerteza.
Rafael Linden
(1) Maria Cristina Machado Motta,
professora do Instituto de Biofísica da UFRJ, aplicou esse exercício a seus alunos
e respectivos orientadores (eu, por exemplo) na disciplina de pós-graduação O nascimento do pensamento ocidental.
(2) Veja a crônica de Affonso Romano
no link http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=3008
(3) Para os interessados, ver o
comentário de Carlos Fiolhais, catedrático de Física da Universidade de
Coimbra, no link http://dererummundi.blogspot.com.br/2007/12/grandes-erros-prmio-santilli-galileu.html
(4) Publicado por Affonso Romano em
seu livro “Sísifo desce a montanha”, de 2011.
“O sapo não pula por boniteza, mas por precisão”.
ResponderExcluirNem todo sapo...
ExcluirBárbaro!!! Sou da teoria de que devemos ser mais fortuitos, e seu texto me fez lembrar de um poema de Maxwell que gosto muito, publicado em "The Life of James Clerk Maxwell" de Lewis Campbell. Deixo aqui um excerto.
ResponderExcluirMolecular Evolution
At quite uncertain times and places,
The atoms left their heavenly path,
And by fortuitous embraces,
Engendered all that being hath.
And though they seem to cling together,
And form 'associations' here,
Yet, soon or late, they burst their tether,
And through the depths of space career.
Maravilha, Carmen! Obrigado pelo adendo, tomara que os leitores não percam a chance de ler sua observação.
Excluirbeijo
Rafael
Rafinha, adorei a crônica chiquérrima, aliás, desculpe, metacrônica... Vejamos se meu comentário desta feita o alcança.
ResponderExcluirSim, alcançou!! Manchete: Primos unidos derrotam Internet...Obrigado, Taninha, ainda acabo aprendendo com você.
Excluirbeijo
Rafael
Prof. Rafael
ResponderExcluirParabéns pelo blog!
O princípio da incerteza sempre norteou minha busca por mais e mais dúvidas científicas. É engraçado como alguém que vive para a pesquisa precisa estar sempre nessa corda bamba para se sentir vivo.
Grande trabalho, vou seguir te acompanhando.
Um abraço
Cristiane
Obrigado, Cristiane. A provocação da Cristina Motta deu certo...
Excluirbjs
Rafael