Combato a raiva e a solidão lendo tudo que há na estante da sala. Minha fé no homem comum arrefece um pouco ao percorrer os romancezinhos triviais de um tal de Mallorqui, os quais retratam minuciosamente as circunstâncias que sempre levavam a um tiroteio entre o herói, de nome “Coyote”, e toda sorte de inimigos da lei. Tudo comprado na banca de revistas da Rodoviária, quando o dono do sítio ainda tinha a pachorra de sacolejar por três horas, em estrada de terra, até chegar neste cafundó. Perda de tempo, com tanta literatura revolucionária para ler.
Hoje meu amigo trouxe mantimentos, para evitar minha ida à vendinha próxima.
Sabe-se lá onde estão os olhos e ouvidos da repressão. Mais que pela comida, fiquei
eufórico quando vi com ele o livro “A companheira de viagem”, que saiu ano
passado. Implorei que deixasse o livro comigo e que trouxesse mais, antes que
eu enfiasse dois dedos na tomada para me livrar de vez do Coyote. Para a viagem
de volta consegui convence-lo a levar “A casa dos Valdez”, garantindo que era
um dos melhores volumes de toda a coleção. Coitado.
Depois que meu amigo se foi, devorei o livro numa noite. Ao ler “A
última crônica”(1), lembrei-me da cena ali retratada. Naquele dia eu
também estava no bar da Gávea. Mas, enquanto uma família humilde celebrava o
aniversário da filhinha com uma única fatia de bolo de fubá e uma garrafa
pequena do refrigerante imperialista, comprados com tudo que o pai tinha no
bolso, meus olhos estavam fixos no cronista.
Eu o reconhecera de uma palestra organizada pelo Diretório Acadêmico. Porém,
ao contrário da vivacidade com que ele proferira aquela conferência, desta vez percebi
tristeza e preocupação quando entrou e pediu um café. Cabisbaixo, olhava ocasionalmente
para os lados, mas nada o animava. Até que a família da aniversariante sentou-se
à mesa do lado oposto do salão.
Observei, extasiado, a transfiguração. De uma desesperança ao entrar, assumiu
um ar de curiosidade, atento ao que se passava no canto do bar. Só o perdi de
vista quando o garçom atravessou na frente dele, dirigindo-se ao balcão e,
depois, voltando para servir o minguado lanche da festinha.
Mais alguns instantes e já seu rosto se iluminava, mal contendo um
sorriso que, irreprimível, se esboçava no canto dos olhos. E quando, de longe,
eu ouvi a vozinha frágil da criança cantando “Parabéns pra você...”, os olhos dele
brilharam. Assim ficaram, como
prova da epifania que gerou, pela mão de Fernando Sabino, uma das mais belas
crônicas da literatura brasileira.
Haja o que houver, sempre me lembrarei de tudo isso para não perder a
ternura.
(1) Encontre esta crônica no link http://pensador.uol.com.br/a_ultima_cronica_de_fernando_sabino/
Rafael Linden
É a sensibilidade já tão em falta no mundo de hoje. Confesso que certas atitudes por ai me levam a pensar se não deveria haver uma escola para resgatar e ensinar delicadeza e ternura, se é que isso se pode aprender uma vez não tendo.
ResponderExcluirLindo texto!
Obrigado, Carmen. Também não sei se é possível aprender em uma escola. Mas pode-se descobrir dentro de si e nos outros.
Excluirbj
Olá Rafael
ResponderExcluirLindo Texto,foi divulgado no Agregador Teia,por não conter imagem eu coloquei uma que eu escolhi,caso queira trocar é só me mandar uma que eu troco!
Até mais
Eu esqueci de mandar imagem, mas a que você escolheu ficou excelente. Obrigado,
ExcluirRafael