A revista
científica Proceedings of the National
Academy of Sciences divulgou, esta semana, um artigo demonstrando que um
exame de imagens do cérebro ajuda a prever a chance de um criminoso voltar a
cometer crimes depois de cumprir pena.
Essa
publicação vai dar o que falar e, desde já, peço aos leitores mais belicosos
que se contenham nos limites da civilidade ao comentar o texto ou espinafrar o
autor por abordar semelhante assunto. Trata-se, apenas, de uma crônica.
Para
começar, voltemos ao século XIX e a uma teoria chamada frenologia. A palavra,
derivada do grego, significa “estudo da mente” e a idéia inicial tinha lá seus
méritos como, por exemplo, o fato de seu fundador, o médico alemão Franz Gall,
ter sido um dos primeiros a considerar que o cérebro é a sede das atividades
mentais e que suas diferentes partes servem a funções distintas. Porém, a
frenologia ficou tristemente conhecida como a teoria que dizia ser possível
prever o caráter e a personalidade de um cidadão e, assim, seu potencial de
criminalidade pelas saliências e reentrâncias do seu crânio. Essa pretensão
foi, é claro, descartada como pseudociência.
Agora
transportemo-nos para um filme de 1975, estrelado por Jack Nicholson, chamado
“Um estranho no ninho”. Quem não viu, não sabe o que está perdendo. O roteiro
gira em torno de um criminoso reincidente, que dá um jeito de ser internado num
hospício na esperança de cumprir pena em condições mais brandas do que numa
prisão comum. O personagem lidera uma revolta dos internos contra o
autoritarismo e a rigidez com que os pacientes são tratados e, em meio a muita
confusão, nosso herói termina “amansado” por uma cirurgia no cérebro, chamada
lobotomia frontal. Esta técnica foi criada pelo neurologista português Egas
Moniz, na década de 1930, e consiste na desconexão do lobo frontal do cérebro
do restante do órgão, levando o paciente a um estado de pouca ou nenhuma reação
a estresse ou emoções. A lobotomia rendeu o Prêmio Nobel ao seu inventor, mas
caiu em desuso por razões médicas e éticas.
Então, nosso
contexto inclui a tentativa de prever comportamentos a partir de características
físicas, bem como intervenções na estrutura do cérebro para modificar a
personalidade de um indivíduo. Considerem-se os estimados leitores avisados,
pois aí vem chumbo grosso. Entretanto, não só a revista da seleta Academia de
Ciências dos EUA tem credibilidade, mas o artigo publicado leva a assinatura de
vários profissionais respeitáveis, como os neurocientistas Kent Kiehl, da
Universidade do Novo México e Michael Gazzaniga, da Universidade da California
em Santa Barbara, bem como o filósofo Walter Sinnott-Armstrong, da
Universidade Duke, especialista no uso jurídico da Neurociência.
A pesquisa
partiu do conceito de que uma região do cérebro, o córtex cingulado anterior
(abreviado ACC), participa de circuitos neurais que permitem reorientar a ação
do indivíduo de modo a inibir reações impulsivas inadequadas. Esta noção é
compatível com o efeito de lesões no ACC, que levam pacientes a ser
classificados como portadores de personalidade psicopática.
Os
cientistas examinaram, com uma técnica de imagem conhecida como ressonância
magnética funcional, a atividade do ACC em resposta a um teste no qual
prisioneiros deviam dar respostas diferentes a dois estímulos distintos
mostrados na tela de um computador. Porém, o teste foi desenhado de tal forma a
induzir que os sujeitos dessem a mesma resposta para ambos os estímulos e,
portanto, para acertar era preciso que eles inibissem a tendência a responder
de forma impulsiva. Nesse cenário a atividade do ACC aumenta durante o teste,
mas o aumento foi distinto em cada indivíduo, maior em alguns do que em outros.
Esta
variabilidade era esperada, mas o importante é o que veio depois. Os testes
foram feitos às vésperas do final da pena de cada prisioneiro e o destino destes
foi acompanhado por alguns anos após a libertação, com base em um registro
nacional de atividades criminais. E é aí que a porca torce o rabo, pois foi
encontrada uma correlação significativa entre a alteração de atividade da ACC e
a probabilidade do ex-prisioneiro voltar a ser preso nos 3 anos subsequentes ao
fim da pena anterior. Nos casos em que a atividade do ACC durante o teste foi
baixa, os individuos apresentaram uma probabilidade de reincidência cerca de
duas vezes maior do que quando a atividade do ACC era alta. Uma série de
medidas adicionais mostrou que não havia correlação significativa com outros
fatores, como por exemplo a idade na época da libertação, abuso de álcool ou
drogas ou características gerais do cérebro. A atividade específica do ACC foi
o único fator que apresentou uma capacidade robusta de prever a reincidência no
crime.
Longe de
concluir que, antes de sair da prisão, cada interno deve ser submetido a uma
ressonância magnética funcional para ganhar um rótulo de provável ou improvável
reincidente, os autores discutiram seriamente as implicações dos resultados.
Diversas ferramentas, como entrevistas e outras formas de identificação de
fatores de risco psicosociais, já são aceitas para previsão de reincidência no
âmbito jurídico. Os cientistas sugeriram, prudentemente, que a investigação
direta e objetiva da atividade cerebral poderá eventualmente se adicionar aos
métodos atuais, em lugar de substituí-los. Além disto, apontaram a dificuldade
de aplicar a casos individuais resultados que indicam tendências em uma
população, bem como reconheceram as dúvidas sobre se o exame de imagem atinge
os padrões legais de prova em processos criminais ou se viola direitos
fundamentais dos réus.
Por outro
lado, os pesquisadores salientaram que seus achados reforçam a hipótese de que
características mensuráveis, tais como a atividade cerebral no ACC durante
testes que implicam inibição de respostas impulsivas, tem o potencial de
caracterizar traços de personalidade independente de entrevistas e impressões
subjetivas. E foram além, sugerindo que resultados semelhantes poderão,
eventualmente, fundamentar terapias dirigidas para circuitos cerebrais
específicos. Em outras palavras, no futuro talvez se possa tratar o potencial
de criminalidade de um indivíduo de forma análoga a outros tratamentos
psiquiátricos modernos. A gentil leitora pode ficar sossegada porque, embora o
ACC seja uma das partes do cérebro envolvidas na famigerada lobotomia frontal e
em outras formas de psicocirurgia, cá no telhado prefiro pensar, se alguma
coisa, em terapias mais amenas e éticas, ainda que de tarja preta.
Depois dessa
história toda, restam-me duas considerações. Há uma certa ironia no fato de
que, décadas depois da frenologia ser desmoralizada, parece fortalecer-se uma
“neofrenologia”, quem diria, com boa chance de realizar o sonho maluco do Franz
Gall de prever o potencial de criminalidade de alguém por medidas objetivas,
não de protuberâncias do crânio, mas de atividade cerebral. E, de minha parte,
passei a acalentar um desejo sincero de, quiçá, num futuro não muito distante
aplicar compulsoriamente tais métodos a candidatos a cargos públicos que não
raro são ocupados por criminosos reincidentes, cujos traços de personalidade
poderiam ser detectados precocemente por ressonância magnética funcional
durante um singelo teste psicométrico.
Rafael Linden
Já estava eu desejando que semelhante análise fosse feita nas cabeças de nossos possíveis futuros políticos quando, no último parágrafo, vi que meu desejo parece ser também o seu.
ResponderExcluirMas penso que algumas dessas mentes são tão poderosas e vis que tenho a impressão de que seriam capazes de enganar até os aparelhos de ressonância.
Como dizem os chineses, "Mentes elevadas pensam em seu dever; mentes vis pensam em seu proveito."
Derrubar a ressonância seria um record...
Excluirabs
R
"Criminosos reincidentes", nossos políticos... essa foi sensacional!
ResponderExcluirEssa comparação parece ser muito popular...
Excluir:-)
R
Achei bem interessante o texto. No sexto parágrafo, você fala que lesões na ACC levariam a personalidade psicopática, eu sempre imaginei (por ter uma visão praticamente cinematográfica da doença) que os psicopatas tomavam atitudes de maneira premeditada.
ResponderExcluirConcordo em aplicar o teste em futuros candidatos a cargo público, meu único medo é não haver quorum suficiente para preencher tais cargos.
A premeditação não exclui a participação destes circuitos cerebrais que funcionam como uma espécie de "censura". A visão cinematográfica também costuma chamar atenção para eventos disparadores do comportamento associado a atitudes inadequadas/criminosas seriais. Mas essa área da Psiquiatria está longe de ser minha zona de conforto. Apenas tem forte efeito literário...
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