O ofício de cronista amador tem altos
e baixos. Se por um lado frustra-nos a distância astronômica que nos separa
de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e outros bambas do gênero, por outro a consciência
de nossa desimportância permite escarafunchar qualquer porcaria que valha uma crônica. Afinal nenhum jornal, muito menos a Internet, nos paga pelo
crime de lesa-literatura que cometemos regularmente. E, se ainda há quem acompanhou o texto até esta linha, já podemos nos dizer mais lidos do que
muita gente por aí. Queiram então reclinar seus assentos e relaxar, pois o garimpo
habitual rendeu um par de reportagens curiosas sobre um nobilíssimo gênero
musical.
Uma notícia veio do portal Atlas Obscura, que ofereceu acesso a pedacinhos
da ópera “espacial” Rigel 9, composta
pelo músico britânico David Bedford para um libretto
escrito por uma autora norte-americana chamada Ursula Le Guin. O texto que acompanha as gravações de uns poucos compassos foi escrito poucos dias após o falecimento de Ursula, a
qual, ali aprendemos, foi muito conceituada e premiada no campo da ficção
científica e literatura fantástica. As amostras não nos animam a buscar a obra
completa no serviço de música digital Spotify,
já que em matéria de ópera limitamo-nos, em geral, a apreciar certas overtures e uma ou outra ária. É bem verdade
que, há quase uma década, encantamo-nos com uma bela apresentação de Fausto, de Gounod e
Berlioz, na Ópera Lírica de Chicago. Porém, no dia seguinte nos deu muito mais
prazer o jazz tocado em um clube próximo
ao hotel. Ainda assim nenhum cronista que se preze, mesmo um tanto operafóbico, consegue
resistir à segunda notícia.
Trata esta de uma ópera bufa do
século XIX que atraiu multidões a teatros nos Estados Unidos. Composta
por um certo George Chadwick para um libretto de Robert Barnet, a peça é intitulada “Tabasco: uma ópera
burlesca” e versa sobre – isso mesmo – um molho inventado nos EUA, feito à base
de pimenta, também vendido em supermercados aqui
mesmo no Brasil. Ora vejam, em meio ao espectro operístico que vai do trágico
de Madame Butterfly ao cômico do Barbeiro de Sevilha, não é de arrepiar dar de
cara com uma ópera dedicada a um condimento? Pois tal assunto foi tratado com a maior seriedade
pelo respeitável portal do Smithsonian
Institute, entre outras razões por conta do trabalho insano de reconstituição da partitura pelo maestro Paul Mauffray.
“Tabasco…” é ambientada em uma ilha
próxima à costa mediterrânea da Tunísia, e conta a história de um Paxá
enfurecido com um jantar insosso que lhe foi servido. Quando isso acontece, o potentado costuma
punir seus cozinheiros decapitando-os a golpes de cimitarra. Instado a resolver
o problema de uma vez por todas, um ministro salva-se à custa de um irlandês
que finge ser um chef francês, capaz
de produzir iguarias deliciosas temperadas com um elixir mágico. Esse
último não passa do molho de pimenta da marca Tabasco. Este palpitante enredo é
decorado com uma historinha de amor entre uma jovem escravizada para servir no
harém do Paxá e um marinheiro que planeja salvá-la daquela humilhação e
desposá-la. Fofo, não?
Pois, com esse libretto que oscila
entre o inusitado e o ridículo, não apenas a opereta fazia enorme sucesso por
volta de 1894, quando foi composta, como a New
Orleans Opera topou bancar o projeto do maestro Mauffray e apresentou
quatro sessões de “Tabasco…” no final de janeiro de 2018. Com casa lotada e
elogios dos críticos. Tenho dúvidas sobre a chance de outras companhias
repetirem a façanha, já que Nova Orleans é mesmo uma cidade sui generis para os EUA, com seu caráter
cosmopolita, tradições marcantes, comida picante e estilo próprio. Assim como muitas heroínas das
óperas mais famosas, a cidade é sofrida, tendo sido em boa parte reconstruída
depois da trágica passagem do furacão Katrina em 2005. A
fábrica principal dos produtos Tabasco persiste até hoje no sul da Louisiana, a
cerca de duzentos quilômetros de Nova Orleans, um lugar que parece mesmo perfeito
para sediar a ressurreição de uma ópera bufa.
Portanto, caros leitores, da próxima
vez que resolverem temperar sua comida com um bom Tabasco, lembrem-se de que estão
lubrificando prosaicas salsichas com a inspiração de uma ópera. Sugiro que, a
título de homenagem, cantarolem ao menos o trechinho que aí vai, traduzido para o idioma de Camões e Zeca Pagodinho: “…comprem-me temperos, os preços estão baixos, canela de Zanzibar, aqui
está a pimenta do Ceilão, pepinos e tomates frescos, cebolas de Bermuda…”.
Acreditem, tudo isso consta de versos originais da música devidamente
interpretada por sopranos, contraltos, tenores e baixos, vestidos a caráter e,
é claro, compenetrados como em qualquer outra ópera.
Numa hora dessas, imagino amantes do bel canto bufando de indignação pela ousadia do maestro Mauffray. Vislumbro faces
desfiguradas e vermelhas como se tivessem subitamente ingerido um punhado das temíveis
pimentas Dragon’s Breath. Não
bastasse o que para muitos já é o insulto de uma ópera “espacial” dedicada a um
planeta imaginário, ainda aparece um molho, encontrado em lanchonetes furrecas espalhadas por aí, elevado ao pedestal em que reina o sofrimento de Floria
Tosca, Violetta Valéry ou Cio-Cio-San.
Rafael Linden
Gostei! Divertido e ilustrativo, como não?
ResponderExcluirE picante! :-)
ExcluirAqui, na terrinha, Tabasco é um picante. Pois, picante picante.
ResponderExcluirOs picantes suaves devem ser um enigma para os visitantes...
Excluir:-)
Abraços saudosos, velho amigo!