A semana começou com uma cerimônia de
premiação de cinema e televisão nos Estados Unidos, cujo tom foi dado pela
campanha internacional contra o assédio sexual e pelo empoderamento das
mulheres em todos os níveis. De início deliciemo-nos com o termo
“empoderamento”, com sorte criar-se-á alguma polêmica linguística entre nossos
leitores. Pois há na internet quem garanta que a palavra, que traduz do inglês
o substantivo empowerment, foi criada
por Paulo Freire e está em dicionários badalados como o Aurélio e o Houaiss. Cá
no telhado, lamentavelmente, não consta do Houaiss, nem do dicionário
etimológico da língua portuguesa de Antonio Geraldo da Cunha, nem do
vocabulário ortográfico do mesmo autor, todos editados mais de uma década após
a morte do educador citado como inventor do neologismo. A palavra sequer dá as
caras no portal do vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras! Mesmo
assim, como um dia já escrevemos impunemente uma crônica sobre “espertofones”, fica
o empoderado pelo não-empoderado e vamos em frente.
Ainda antes que vosso amado cronista passe
do introito ao busílis, advertimos que o longo e tenebroso primeiro parágrafo está
lá para justificar nossa cautelosa atribuição ao leitor rabugento, e não à
gentil leitora, de mil histórias sobre visitas ao supermercado, desde a importância
de comparar preços - como está a carestia, né? -, até o encontro com alguma
celebridade disfarçada com óculos escuros, peruca e outros adereços. A cautela
nos foi aconselhada pelo departamento jurídico do blogue, por motivos óbvios.
Só então revelamos que a presente obra prima da literatura mundial versa sobre
lista de compras.
Numa hora dessas, nos vem à mente um genial
filme alemão - quase todo falado em inglês – de 1989, chamado “Rosalie vai às
compras”. É uma hilariante sátira do consumismo, ambientada numa cidadezinha do
interior de Arkansas, nos EUA, e magistralmente interpretada pelo elenco
encabeçado pela atriz Marianne Sagerbrecht. Embora Rosalie, a personagem
principal, tivesse compulsão por compras de todos os tipos, uma de suas manias
era encher carrinhos de supermercado com iguarias variadas, tais como um bagre
gigantesco ou uma cabeça de porco, além de montanhas de ingredientes destinados
a prover sua numerosa família com refeições pantagruélicas, preparadas por um
dos filhos que sonhava tornar-se um chef.
Assim, pelos habituais caminhos
tortos, finalmente honraremos o título da crônica. Na verdade nosso texto trata
de um curto artigo encontrado num portal de reportagens não usuais, quando não
francamente esdrúxulas, denominado Atlas
Obscura. Lá, na categoria raridades, encontra-se a lista de compras de
ninguém menos do que o toscano Michelangelo Buonarroti, uma das maiores figuras
da história da arte universal, autor das esculturas de David e da Pietà, bem
como da maravilhosa pintura do teto da Capela Sistina, entre muitas outras
obras. Sim senhora, uma prosaica lista de compras, autêntica. E de um objeto
criado por ninguém menos, naturalmente se espera nada menos. De fato, a
lista vem decorada com desenhos feitos pelo artista, ilustrando os acepipes
que, presume-se, teria ele mandado um servo analfabeto buscar no mercado da
cidade. A lista com os desenhos foi rabiscada no verso de uma carta e sua
sobrevivência é surpreendente, já que Michelangelo teria destruído ou mandado
destruir quase todos os seus documentos provisórios, incluindo os esquemas
originais de suas obras. Consta que o artista era um homem solitário,
melancólico e de hábitos extremamente modestos. Sua propalada frugalidade, no
entanto, não combina com a opulência do banquete que a lista de compras sugere,
na qual se encontram os nomes e respectivos desenhos de pães, peixes, saladas,
raviolis e vinhos em profusão. Coerente com a data da carta, o pacote compunha um
belo cardápio de Páscoa, no melhor estilo da nobreza toscana da época.
Pois é, galera, até mesmo um gênio
das artes precisa comer de vez em quando. Não é à toa que, nessa estranha
Renascença contemporânea que vem ressuscitando tantas coisas que achávamos devidamente enterradas
no lixo da História, celebridade no supermercado é assunto sério nas redes
sociais. Lá abundam flagrantes de “famosos” empurrando carrinhos, escolhendo
frutas e legumes, examinando estantes de guloseimas e, nos intervalos, posando
para selfies com funcionários do estabelecimento. A propósito, por que cargas d’água estivemos a polemizar com
“empoderamento” e ainda não apareceu um Paulo Freire para traduzir selfie? Seja como for, uma rápida busca mostrou
incontáveis instantâneos de membros de duplas sertanejas, suas ocasionais namoradas
curvilíneas e sorridentes, atores atrozes e atrizes atópicas de cinema, teatro
ou televisão, políticos do bem e do mal, e outros ícones das páginas de
inutilidades jornalísticas. Uns se vestem como para uma ocasião de gala, outros
ostentam roupas cuidadosamente desleixadas, as quais nossas avós sequer usariam
para tirar o pó da mesinha de cabeceira. As fotos são acompanhadas de legendas
palpitantes sobre o cardápio da casa do fulano, o segredo da maciez da cútis da
sicraninha, a gracinha que ficou a beltrana dentro do carrinho empurrado por
seu eterno amor, ou a simpatia cativante da celebridade que se mistura
alegremente com os eufóricos circunstantes. Tem até página do fêice criada
exclusivamente para emoldurar gente televisiva fazendo compras em um
determinado estabelecimento. Nesse clima, será que a lista de compras de
Michelangelo ainda tem alguma chance de bombar na rede?
O
tempora, o mores…
Rafael Linden
E a lista? Fiquei curiosa!
ResponderExcluirA reportagem está no link
Excluirhttps://www.atlasobscura.com/articles/michelangelo-shopping-list-sketch
:-)