De uns tempos para cá tornou-se lugar
comum celebrar a diversidade. Nada mais justo, afinal preconceito é o que não
falta por aí, das mais variadas categorias: étnicas, religiosas, ideológicas, políticas,
eleitorais, estúpidas ou cínicas. Ainda assim, nosso habitual garimpo
internáutico fracassou na tentativa de encontrar a mais antiga menção ao termo
“celebração da diversidade”. O máximo que conseguimos, num portal de etimologia
meio suspeito, foi uma referência ao ano de 1963 como data de origem da
expressão estampada no topo da crônica com a qual a gentil leitora se delicia
neste exato momento. E saibam que, em que pese os esforços de uma tenaz
professora de francês dos tempos do ginásio, cujo nome nos escapa, a busca na
rede foi indispensável para ajudar vosso amado cronista a escrever o título
acima com todos os éfes, érres e biquinhos.
O rabugento apressa-se a nos
criticar, sob a alegação de que “Vive la
différence!” é preconceituoso por ser usado em geral para exaltar as
diferenças entre homens e mulheres. Nesse caso, só resta enfatizar que nem mesmo
uma versão revista e ampliada da Constituição Federal nos impedirá de apreciar
na gentil leitora atributos que não nos cabe possuir. E basta de
sem-vergonhice, pois aqui se esgota o espaço tradicionalmente dedicado a circunlóquios
e é hora do busílis. Hoje falamos de micróbios. Ou microorganismos, como se diz
no ambiente acadêmico.
Micróbios, sim senhora, no plural. E
que plural! Não são uma dúzia ou uma centena. Trata-se de um trilhão de
espécies distintas de micróbios. Não, senhor, também não é apenas um trilhão de
indivíduos. Para se ter uma idéia, o American
Kennel Club registra oficialmente pouco menos de duzentas raças de cães, e a
Federação Cinológica Internacional reconhece mais de trezentas, mas todas são
classificadas como variantes de uma única espécie, Canis familiaris. Agora feche os olhos e imagine um trilhão de
espécies de cães, com uma média de, digamos, mil auaus para cada espécie, todos
latindo ao mesmo tempo. Sem falar nos sete e meio bilhões de seres humanos que,
nunca é demais repetir, são todos e todas da mesma espécie Homo sapiens.
Acontece que, salvo melhor juizo de
especialistas, um trilhão é a nova estimativa do número de espécies de
micróbios suficientemente distintas umas das outras para merecer classificação
diferencial. A novidade veio de um artigo, publicado em maio de 2016 por
Kenneth Locey e Jay Lennon, da Universidade de Indiana nos EUA, na revista Proceedings of the National Academy of
Sciences. Ken & Jay não são
uma marca de sorvete nem uma dupla caipira. São dois especialistas em biodiversidade,
que andavam cismados com as estimativas mais recentes da diversidade da fauna e
da flora do planeta. De tanto matutar, desenvolveram modelos matemáticos mais
robustos para analisar populações compostas por grandes números de espécies de
seres vivos. E aplicaram estes modelos aos dados disponíveis sobre mais de
trinta e cinco mil comunidades de mamíferos, aves, plantas, bactérias e fungos.
Com isso eles esperavam calcular melhor os números de seres vivos, inclusive
das espécies mais raras de micróbios, as quais tem sido muito menos estudadas
do que plantas e animais corriqueiros. E chegaram a um trilhão de espécies
distintas de microorganismos, uma multidão microscópica que se distribui pelos
ambientes mais diversos no planeta, inclusive no corpo humano. O complexo
envelope de nossos melhores sonhos e piores angústias é, ora vejam, habitado por algumas dezenas de trilhões de
bactérias de várias espécies, a maioria do bem. Isso mesmo, bactérias
residentes e domiciliadas no corpo da gentil leitora, no corpo do rabugento, de
todos nós. Mesmo depois do banho.
Por si só, a diversidade dos
microorganismos impressiona. Mas os pesquisadores também examinaram outras
características da biodiversidade, entre as quais uma propriedade conhecida
pelo termo “raridade”. Para simplificar, há espécies ditas “dominantes”, das
quais existem grandes números de indivíduos como certos insetos, e espécies
raras, das quais há poucos exemplares como a lula gigante. Dez anos antes de
Ken & Jay, o cientista Mitchell Sogin, do Laboratório de Biologia Marinha
de Woods Hole, nos EUA, estudou microorganismos encontrados em águas profundas
do Atlântico Norte, e classificou as
espécies com base em diferenças genéticas. Embora a maioria das amostras
fosse dominada por um punhado de espécies abundantes, Sogin identificou
milhares de outras, cada uma representada por um número pequeno de bactérias
individuais, e inventou o termo “biosfera rara” para designar esse conjunto de
espécies raras.
Poder-se-ia pensar que se trata de
espécies em extinção, que não deverão resistir na presença de espécies muito
mais abundantes – e bota muito mais nisso. Mas não é o caso. As espécies raras
parecem bem adaptadas aos seus nichos e o doutor Sogin especulava que as
espécies raras podem ter exercido um grande impacto sobre processos globais em
diferentes momentos ao longo da história do planeta. Ken & Jay acrescentaram
outras idéias para tentar explicar a persistência destes grupos minoritários,
incluindo características dos seus estágios de vida, tendência a se dispersar e
colonizar novos habitats, capacidade de repartir nichos ecológicos e habilidade em manter populações reduzidas. Assim, os grupos minoritários teriam o potencial de se tornar dominantes no caso de mudanças do ambiente
e, por conseguinte, passar a – ou voltar a - influenciar processos globais.
O escritor irlandês Oscar Wilde dizia
que a Vida imita a Arte. Esse nosso mundo tem dado voltas frequentes e
estonteantes, e muita coisa tem incomodado qualquer um que tenha um
mínimo de preocupação com o futuro. Por essas e outras, não deixa de ser
reconfortante aprender - e reaprender, quantas vezes forem necessárias - que a
diversidade é natural, resiliente e dinâmica. E que – Vive la différence! - sempre
haverá uma reserva de raridades, até mesmo dentre os membros de nossa espécie, que poderão, em outras circunstâncias,
tomar um rumo melhor do que se vê no nosso sofrido planeta. Basta que, tautologicamente,
a Vida imite a Biologia.
Rafael Linden
Mesmo não tendo a verve da escrita do nosso querido "Cientista no telhado" , concordo e por vezes até temo, ....num futuro não muito distante , grupos minoritários terão o potencial de se tornar dominantes...... Ficçaõ ???? Acho que realidade !!!!!
ResponderExcluirGrupos majoritários ou minoritários podem ser do bem ou do mal...
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