A gentil leitora certamente lembra
com saudade dos anos noventa quando, ainda criança, não perdia as aventuras dos
Ursinhos Carinhosos, não é mesmo? Não? Nem sabe do que se trata? Eram
personagens de desenhos animados, exibidos no programa de TV da apresentadora
infantil Mara Maravilha. As histórias giravam em torno de uma família de ursinhos
sorridentes, de vários tamanhos e cores, e mais uma fieira de outros bichos
simpáticos, cujas aventuras eram sempre resolvidas pelos bons sentimentos dos
heróis. O grande vilão daqueles filminhos era um ser tonitruante, vestido de
roxo, com um capuz que revelava apenas um par de assustadores olhos vermelhos. Chamava-se
“Coração Gelado”, e sua função nas historinhas era sabotar os bons sentimentos
dos inocentes ursinhos. Lembrou agora?
Daí as maiúsculas no título que
servem para, entre outras coisas, diferenciá-lo do forró do grupo pernambucano
Limão com Mel, ou de melôs românticas de artistas célebres, como José Augusto
ou Lucas Dutra…quem? E também para distingui-lo do trêmulo “coração alado” do
compositor cearense Raimundo Fagner. E daí, pergunta o leitor rabugento? Tudo
isso para, ao fim e ao cabo, o humilde cronista confessar que, novamente,
tergiversa? É claro, pois o que nos interessa aqui não é o vilão do desenho
animado, nem os lamentos de poetas e cantores. É coração gelado mesmo,
literalmente. O coração de um esquilo.
Apesar da Disney nos empurrar goela
abaixo a idéia de que esquilinhos são do bem, nossos fãs que moram no
hemisfério Norte os consideram uma praga mesmo. Porém, hoje, esses animaizinhos
se tornam personagens de uma crônica neste sagrado espaço que…bom, vamos ao que
interessa. Muitos esquilos hibernam durante o inverno. Um deles é um bichinho
que pesa cerca de duzentas gramas e ostenta treze listras no dorso. Esse tipo
de esquilo é encontrado no meio oeste norte-americano, região em que o inverno
costuma ser rigoroso. No verão o bichinho saltita pelas matas, come de tudo sem
culpa, acumula gordura corpórea, estoca sementes e outros alimentos na sua toca,
e tem uma temperatura corporal parecida com a nossa. Já durante os meses frios,
que naquela região vão de novembro a março, o esquilinho entra em hibernação.
Sua temperatura corporal cai a cinco graus centígrados, mais ou menos aquela em
que mantemos nossa aguinha gelada dentro do refrigerador. Nesta
temperatura o bicho fica em torpor, gastando as energias acumuladas nos meses
quentes, e sonha com comida quentinha e bem temperada acompanhada por um bom
vinho, de preferência um Clos Fourtet
St.-Emilion.
Mais impressionante é que, durante a
hibernação, a cada uma ou duas semanas o esquilo acorda por algumas horas,
eventualmente mastiga um lanchinho do estoque e volta a dormir por mais uma ou
duas semanas. No curto período acordado sua temperatura volta aos trinta e
tantos graus e, depois, retorna aos cinco, passando pelos vinte graus, uma
temperatura na qual animais que não hibernam sofrem invariavelmente parada
cardíaca. Ou seja, o coraçãozinho do esquilo sofre choques térmicos repetidos,
um dos quais apenas bastaria para liquidar o leitor rabugento e nos deixar em
paz. Essa resistência intriga os cientistas, tanto pelo mistério biológico,
quanto pela possibilidade de que o conhecimento dos mecanismos de defesa do
coração do esquilo permita, no futuro, desenvolver novos tratamentos para
doenças cardíacas.
Por isso, uma equipe da Universidade
de Minnesota, nos EUA, estudou a fundo a expressão de genes e o conteúdo de
proteínas do coração destes esquilos em diferentes meses do ano, para comparar
espécimes em atividade no verão com aqueles em hibernação, tanto durante o
torpor quanto no curto período em que eles acordam temporariamente. O estudo,
publicado em outubro de 2015 na revista Journal
of Proteome Research, é interessante não apenas pela pergunta biológica,
mas também pelo método de análise desenvolvido pelo grupo liderado pelo biólogo
Matthew Andrews, e que contou com bioquímicos e especialistas em computação de
alto desempenho. Trata-se de programas utilizados no supercomputador da
Universidade, capazes de processar uma quantidade enorme de informação sobre os
genes e as proteinas. Por uma série de razões técnicas, essa metodologia
representa um avanço importante, fornecendo dados novos e abundantes que
aumentam muito a compreensão das respostas das células a eventos externos,
nesse caso a hibernação.
Os pesquisadores identificaram um grande
número de proteínas que é afetado pelo resfriamento, e agora estão buscando,
dentre elas, quais, ou que combinações, são responsáveis pela resistência do
coração dos esquilos hibernantes. A enorme quantidade de dados significa que,
provavelmente, levará um bom tempo até que as respostas definitivas sejam
encontradas. Mas há uma grande expectativa de que estudos desta natureza contribuam
para iluminar questões complexas, e os métodos desenvolvidos pela equipe do
Doutor Andrews poderão ser muito importantes para avançar o conhecimento
biológico e médico.
Aqui do telhado vejo que a gentil
leitora, ainda assim, parece triste.
Penso que, malgrado sua estonteante beleza, profunda inteligência e cativante
doçura, já terá, em algum momento, sido vítima de um coração gelado. Talvez
esteja a suspirar, atormentada pela lembrança do vilão cruel que feriu seus sentimentos
e destruiu seus sonhos, ou pelas musiquinhas bregas que teimam em torturá-la
com recordações indesejáveis. Que dizer, numa hora dessas? Receio que, em
contraposição ao coração do esquilo hibernante, ainda que proliferem os
cientistas mais brilhantes e os supercomputadores mais poderosos, os mistérios
do coração metafórico sejam impenetráveis…
Rafael Linden
Comentar em blog é muuuito chato e burocrático... Mas esse eu tenho que dizer, eu preciso dizer: FASCINANTE!
ResponderExcluirAdooorei... Bjos.
Obrigado, Thamires. Volte sempre!
ExcluirBjs.