No filme “O diabo veste Prada”, de
2006, Anne Hathaway aparece como a personagem Andy, uma jovem recém-formada que
consegue um emprego como secretária da personagem Miranda Priestley, poderosa editora
de uma revista de moda interpretada por ninguém menos do que Meryl Streep. Numa
de suas primeiras contracenas, a secretária não vê diferença entre as cores de
dois cintos, provocando em Miranda um monólogo antológico sobre a cor do suéter
da moça, a criatividade de estilistas famosos e a indústria da moda, iniciado
pelo comentário “…o que você não sabe é que esse seu suéter não é simplesmente
azul, não é turquesa, não tem cor de lápis-lazuli, na verdade é cerúleo…”. Ao fundo outra personagem,
interpretada por Emily Blunt, rouba parte da cena com um simples balançar da
cabeça, reprovando a incapacidade de Andy distinguir cores. É um de vários
momentos em que as três atrizes, em particular Meryl, justificam seus salários com
abundantes recursos artísticos.
Pois, aqui do telhado, vosso cronista
predileto reviu a cena várias vezes em uma base de dados de monólogos de cinema
ou teatro que – juro pelo que há de mais sagrado – existe na internet e,
confesso, continuo não vendo diferença de cor entre os dois cintos. Sacumé, né? Hômi com “ó” maiúsculo só reconhece branco, preto, vermelho,
amarelo, verde e azul, em combinações de duas ou três, as quais correspondem às
camisas de seu time de futebol predileto, é
ou não é, rapeize? Mas, à parte esse surto de machismo psicótico, como é
que os “hômi” e as mulheres distinguem uma cor da outra?
Eis uma das muitas questões sobre a Natureza
cuja solução envolve a Física, a Química e a Biologia, um pouco de cada. Para
simplificar basta acreditar que, lá no fundo dos lindos olhos da gentil
leitora, existem células de um tipo particular, chamadas cones. Esses cones são receptores
de cor, ou seja, funcionam como detectores seletivos para as múltiplas
cores que fazem parte de imagens que a óptica do olho forma sobre a retina. No Homo sapiens, essa nossa espécie que,
ora vejam, é a mesma tanto para homens quanto para mulheres, a retina possui três
tipos distintos de cones. Cada um é sensível a uma faixa limitada de cores do
chamado espectro visível, que é o conjunto de todas as cores daquele belíssimo arco
iris que surge em lugares bucólicos ao final de uma chuva refrescante. A
percepção das diferentes cores depende de quais dos três tipos são ativados por
cada imagem, e o quanto cada tipo é ativado. A partir da combinação da atividade
dos cones, a informação é transmitida para o cérebro e leva à percepção da cor
de um objeto.
A visão pode ser objeto de anomalias
como o daltonismo, no qual um indivíduo tem reduzida sua capacidade de
distinguir cores, por carência ou inativação de um dos três tipos de cones. Mas
mesmo em condições normais, nem sempre é possível distinguir duas cores muito
parecidas apenas com os três tipos de detectores que a retina humana possui.
Esta capacidade pode melhorar com muito treino, coisa que faltava na
inexperiente secretária e sobrava na editora da revista caricaturada naquele
filme. Ainda assim, animais que possuem uma variedade maior de receptores de
cor são capazes de detectar diferenças mais sutis. E, por mais que o leitor
rabugento se ache melhor, mais evoluído e mais importante do que meros camarões
ou borboletas, muitos desses bichos são bem melhores do que ele para
diferenciar cores. De passagem, esclareço que isso não tem nada a ver com o
chamado “camarão borboleta”, um jeito peculiar de cortar e limpar o crustáceo
para o preparo de camarão empanado. Trata-se de Fisiologia mesmo.
Tanto camarões quanto borboletas tem
olhos muito diferentes dos nossos, mas os princípios da visão de cores são
muito parecidos. Vários exemplares possuem mais receptores do que seres humanos
e, francamente, alguns exageram. Por exemplo, um camarão conhecido como
estomatópode, lacraia-do-mar ou lagosta-boxeadora possui quinze tipos distintos
de receptores de cor, e uma borboleta chamada bluebottle tem dezesseis.
Essas descobertas foram divulgadas em artigos científicos, um deles publicado
pelo cientista norte-americano Thomas Cronin na revista Current Biology em 2006 – mesmo ano do lançamento de ”O diabo veste
Prada” -, e outro por um consórcio de pesquisadores do Japão e de Taiwan, na
revista Frontiers in Ecology and
Evolution em março de 2016. Naqueles dois animais há muito mais receptores sensíveis
às cores que os humanos enxergam, além de alguns tipos também sensíveis a
ultravioleta, que nós não enxergamos. Essa grande variedade de células, com
sensibilidade diferencial para cores bem próximas, aumenta muito a capacidade dos
bichinhos distinguirem colorações que nós achamos idênticas.
Neste exato momento pergunta o
rabugento se não seria suficiente uma notinha de pé de página dizendo que há
bichos que enxergam cores muito melhor do que os humanos. Precisava de toda essa
xaropada cinematográfica lá do início? Ora, respondemos em coro, é claro que
sim. Pois assim podemos encerrar apoteoticamente, arredondando o texto com o esperado
delírio deste vosso criado, que vislumbra camarões e borboletas debatendo
febrilmente as novas tendências de cores da coleção Primavera-Verão 2016 da Maison Chanel ou da grife Oscar de la Renta, deixando boquiaberta
a editora da revista Vogue.
Rafael Linden
LIbera o link dos monólogos, por favor. De resto, adorei o texto!
ResponderExcluirObrigado, Ricardo. O link é http://www.monologuedb.com
ExcluirMas acho que há outros também.
abs
R
Muito saboroso Rafael, se as cores complicam então espero blog do olfato e gosto. A percepção do amarelo há 2 séculos desafiava os cientistas havendo somente cones RGB, precisamos então das outras células da retina e do SNC. Abraço (PS: sempre voto no seu blog!)
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Ricardo. De fato, a visão de cores tem muitos outros mistérios. Olfato e gustação, então, nem me arrisco a incluir em crˆønicas (ainda...)
ExcluirGrande abraço
Rafael
Adoorei o texto... como nos padrões desse blog rico em conhecimento!
ResponderExcluirObrigado, Amanda. Volte sempre!
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