E lá se vão trinta anos do lançamento
do filme “A pequena loja dos horrores”, uma hilariante comédia musical
estrelada por Rick Moranis no papel de um florista que cultiva em casa uma
plantinha carnívora, chamada “Audrey 2”. O nome era uma homenagem a outra
funcionária da loja, por quem o personagem nutre uma secreta paixão e que, por
sua vez, namora um dentista sádico magistralmente interpretado por Steve
Martin. Um dia, o humilde florista propõe ao dono da floricultura levar a
planta para o estabelecimento, com a intenção de atrair fregueses. Logo, “Audrey
2” se revela apreciadora de sangue humano e torna-se uma devoradora de
personagens, entre os quais o dentista, o proprietário da loja, e por aí vai. A
película é uma adaptação do musical homônimo, que estreou em 1982 em um teatro
de Nova Iorque, e cuja trilha sonora foi em grande parte aproveitada no filme. Já
a peça tinha sido inspirada num filme de horror, de 1960, dirigido por Roger
Corman, considerado um dos grandes realizadores de “filmes B”.
Celebremos pois o trigésimo aniversário
da terceira versão da pequena loja dos horrores, e os que não a viram não sabem
o que perdem. Entrementes, a gentil leitora já intuiu que, como de hábito, o
assunto da crônica não é o que parece. De fato, não é Cinema. É Ciência. Mas,
em nossa defesa, é a Ciência das plantas carnívoras.
Esses espécimes representam a
vingança dos vegetais. “Ah, animais comem plantas? Pagarão caro por isso!”,
bradavam as múltiplas ancestrais de centenas de espécies de plantas carnívoras
conhecidas. Reunidas há mais ou menos uns cem milhões de anos, decidiram
proliferar e se expandir por Gaia, quiçá sonhando com um mundo no qual
frigoríficos industriais, alguns aliás de má fama, eventualmente fornecerão a
saborosa proteína animal para sua insaciável glutonaria. Combinaram começar com
protozoários, depois insetos, anfíbios de pequeno porte, roedores inocentes, na
expectativa de que um dia – ah, esse dia há de chegar, exultavam as pioneiras –
deliciar-se-ão em banquetes pantagruélicos com as mais macias carnes de veganos
incautos. Tá bom, tá bom, talvez o cronista tenha se excedido um pouquinho mas,
do jeito que as coisas andam, é melhor tomar certos cuidados para não nos
surpreendermos com a materialização do pesadelo de Roger Corman e seus
sucessores.
O fato é que plantas carnívoras
existem por aí aos montes e usufruem do valor alimentício de suas presas por
meio da secreção de enzimas digestivas poderosas, em câmaras nas quais animais
caem ou são capturados. Uma das mais conhecidas atende pelo nome científico Dionaea muscipula, seu apelido em inglês
é Venus flytrap, e o equivalente
nacional é Papa-mosca. É muito
parecida com a “Audrey 2”, tem o jeitão de uma boca aberta com “dentes” nas
extremidades. No interior há pelinhos delicados, que servem como sensores da
presença da vítima, em geral um inseto. Quando tocados, esses pelinhos
transmitem informações que disparam o fechamento rápido da “boca”, como numa
ratoeira – daí o nome científico muscipula
-, seguido pela secreção interna das enzimas digestivas. A planta pode repetir várias
vezes a sequência de se abrir, capturar e digerir nova presa, e sobreviver por
alguns anos até envelhecer e perder a mobilidade necessária para suas refeições.
Mas esse ritual precisa estar bem
ajustado, pois elas crescem ao relento e vez por outra chove. Entretanto, a
planta raramente se fecha na chuva, coisa que, convenhamos, seria um
desperdício na ausência de um suculento inseto. Como é que o vegetal distingue o
contato acidental com uma gota de chuva da captura de uma mosca distraída? Essa
questão foi respondida há cento e quarenta anos, por um cientista britânico
chamado John Scott Burdon-Sanderson. Em 1876 Sanderson e um colega publicaram
um artigo na revista Proceedings of the
Royal Society, demonstrando que cada toque num pelinho da face interna da papa-mosca
dispara um fenômeno bioelétrico chamado potencial
de ação, que se espalha pela planta. E que dois ou mais toques são
necessários para provocar o fechamento da planta. Um inseto em movimento tem
chance de tocar dois ou mais pelinhos em rápida sucessão, o que leva ao
fechamento, enquanto é muito menos frequente o toque rápido de duas gotas de
chuva sobre dois pelinhos, a não ser sob um temporal torrencial. Além disso, o
inseto cada vez se move mais, em agonia, à medida que a planta se fecha com ele
dentro, reforçando o mecanismo que tranca a vítima na Dionaea. Bacaninha, né?
Pois tem mais. O cientista alemão Rainer
Hedrich liderou um grupo que esmiuçou o ritual gastronômico da papa-mosca. Usando
tecnologia ultramoderna, os pesquisadores demonstraram vários mecanismos que
ainda não eram conhecidos, publicando seus resultados na revista Current Biology. O mais intrigante foi a descoberta de que a planta “conta” os
toques nos pelinhos sensores. As aspas são um sinal de respeito por nós,
humanos, que muito nos orgulhamos de nossa capacidade de contar e nos
regozijamos quando uma criança de um ano e meio aprende a contar
1, 2, 3…Mas não é que o diabo da planta tem habilidades matemáticas? Hedrich e
seus colegas testaram quantos toques eram necessários para disparar cada etapa
do processo de captura e digestão, e concluiram que são necessários apenas dois
toques consecutivos para promover o fechamento da Dionaea, mas são necessários três ou mais toques consecutivos para
disparar a secreção das enzimas digestivas! Há pouco tempo, um grupo de
cientistas surpreendeu o mundo acadêmico com uma demonstração de que pintos
conseguem “contar” objetos para tomar decisões em uma tarefa. Agora vem esse
cidadão nos dizer que pinto é…pinto perto da papa-mosca? Sei não mas, por via
das dúvidas, acho que devemos nos preocupar com a proliferação dessas plantas
carnívoras por aí. Vai que começam a fazer contas um pouquinho mais complexas e
resolvem dar palpite na Economia, já não nos bastam os horrores atuais?
Rafael Linden
venhar agregar seus links no agregador de links http://vidavadia.com.br
ResponderExcluirCrônica incrível, tanto impressiona pela beleza na colocação das palavras como pela riqueza de informações. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Diogo. Volte sempre!
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