O Novo Testamento contém uma passagem
em que Jesus é visto caminhando sobre as águas do Mar da Galiléia. Se, por um
lado, a doutrina cristã se refere a este episódio como um milagre que atesta a
importância da fé, por outro a rapaziada, com seu inefável espírito de porco, inventou
a piada em que Cristo exorta São Pedro a ensinar o caminho das pedras para um
incauto que se afogava ao tentar semelhante aventura.
À parte tanto a religião quanto a
pilhéria, certos insetos não apenas caminham sobre a água, como conseguem
escapar de predadores aos pulos como se tomassem impulso sobre um chão de
pedras. Tal proeza é típica da família dos Gerrídeos, dos quais faz parte um
simpático frequentador de rios e poças, conhecido pelo nome de aranha d’água
ou, por motivos óbvios, inseto-Jesus. Para caminhar sobre a água, esses bichinhos
se valem de uma propriedade da interface entre água e ar, chamada tensão
superficial. Isso se deve à atração mais intensa entre moléculas no estado
líquido do que entre essas e o ar, assim criando na superfície da água um
comportamento semelhante a uma membrana elástica. Em consequência, os minúsculos
e relativamente leves Gerrídeos podem flutuar e se movimentar na superfície da
água sem muito esforço.
Ao longe ouvimos o rabugento
vociferar contra a dedicação de nosso precioso tempo às proezas malabarísticas
de insetos quando, em se tratando de água doce, nossa única preocupação deveria
ser o mosquito transmissor de dengue, chikungunya e zika. Para aquele
leitor, só nos resta asseverar que, ainda agorinha, confirmamos não haver uma
só gota de água parada exposta ao ambiente em nossa residência, a qual pudesse
servir de criadouro para larvas de Aedes. Outrossim, a presença dos Gerrídeos
na crônica se deve tão-somente à inspiração que ofereceram para o
desenvolvimento de uma nova ferramenta de robótica.
Engenhocas inteligentes não são
novidade, e volta e meia aparece na televisão um robozinho capaz de coisas
surpreendentes. A idéia de usar a tensão superficial para ajudar maquininhas a
caminhar sobre a água também não é nova, e já foi materializada há mais de uma
década. Mas nenhum microrobô era capaz de pular na água. Pois cientistas dos
departamentos de robótica e de mecânica de fluidos da Universidade Nacional de
Seul, na Coréia do Sul, lideraram uma equipe internacional que conseguiu produzir
um microrobô muito parecido com uma aranha d’água, o qual foi capaz de pular a
partir da superfície de água, usando a tensão superficial como base principal
desta habilidade. Um trabalho relatando esta história foi publicado em julho de 2015 na
prestigiosa revista Science.
A Física envolvida no estudo não é
para amadores, e este vosso criado não se atreve a tentar explicá-la,
bastando-lhe o trabalho que teve para entender o conteúdo do trabalho de forma
superficial – sem trocadilho. Mas o bacana é que os cientistas, antes de mais
nada, usaram câmeras de alta velocidade para registrar detalhadamente os
movimentos das patinhas deste tipo de inseto ao pular na água, depois mediram e
calcularam um monte de parâmetros mecânicos e, com isso tudo, construíram
insetos artificiais, que conseguem pular na água de forma quase indistinguível
de um inseto de verdade. Finalmente, encontraram uma solução para um problema
complicado na área de robótica, que era uma barreira para o desenvolvimento de
novas máquinas móveis mais eficientes.
Aquele leitor – lembram? - continua ranheta
e, desdenhoso, pergunta para que serve uma engenhoca dessas. Já não nos basta
insetos que transmitem doenças, agora teremos de conviver com insetos
artificiais “Made in Korea”, à venda nas boas casas do ramo, para que
desocupados nos apoquentem com mais essa praga? Pois, com toda a pachorra que
nos é característica, em respeito à gentil leitora que nos acompanha há tanto
tempo, apressamo-nos a concluir que a aplicação da biologia como fundamento de
engenharia avançada é um dos caminhos mais promissores para o desenvolvimento
futuro de máquinas mais úteis. De fato, quando a robótica começou, pouca gente
acreditava que, hoje em dia, tantos destes equipamentos já estariam em uso rotineiro
na prospecção de petróleo, na montagem de artefatos industriais, na mecanização
de experimentos de laboratório, no controle de cirurgias de difícil acesso, e
até nos robôs aspiradores de pó que, tenho certeza, o rabugento bem gostaria de
ter em casa para poupar-lhe a incômoda tarefa de levantar de sua poltrona
reclinável, a fim de coletar as migalhas dos biscoitinhos que consome enquanto
lê nossa coisinhas.
Rafael Linden
A maioria das coisas que é inventada tem pouca utilidade na hora exata da invenção (a não ser que se estivesse buscando a solução de problemas específicos) - depois, os princípios usados na invenção são transferidos para coisas "úteis" ou então a própria invenção, ao existir, cria um novo nicho de aplicação. Assim, o seu leitor ranheta não tem razão e a sua crônica é excelente, como de hábito.
ResponderExcluirO leitor rabugento nunca tem razão...
Excluir:-)
boa noite amigo vir lher convidar para agrega links conosco http://www.vidavadia.com.br/
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