Diz-se que a crônica é uma narrativa sobre
o cotidiano. Assim espera-se, em geral, que a crônica de Natal seja seguida por
outra de Ano Novo. É aí que mora o perigo. Pois, nessa época do ano, quando o
cronista não está jiboiando nalgum hotel-fazenda, quase sempre está mofando na
fila do supermercado ou esfalfando-se ao assar o peru e produzir a farofa, a
uma temperatura ambiente que prova ser o aquecimento global um fenômeno concentrado
em sua diminuta cozinha.
Nestas circunstâncias torna-se
difícil achar assuntos de Ano Novo que não resoluções a descumprir, Reveillon na
praia, conflitos familiares explosivos à mesa farta ou a traquinagem do
Zequinha, que arrancou a coxa da ave e bateu com ela na cabeça do irmãozinho
menor. Para fugir do lugar comum e, assim, escapar do desdém dos escassos
leitores que já curaram a ressaca e conseguem enxergar estas mal-traçadas
linhas, aí vai a crônica de Ano Novo sobre...lantejoulas.
É outra daquelas em que o embatucado
cronista lança mão do último número da revista eletrônica do Smithsonian Institute e, a duras penas,
eventualmente desemboca no cotidiano. Portanto, armai-vos de vossa proverbial
paciência e, como se costuma dizer no início das sessões solenes da Academia Francesa,
vamulá!
Desta vez refiro-me a um artigo de
Emily Spivack, editora de história da moda da Smithsonian. Ela narra brevemente a saga das lantejoulas a partir
da descoberta da tumba de Tutancamon, na qual se encontrou um monte de disquinhos
de ouro costurados nas vestimentas reais. Isso indicaria, segunda Spivack, que
a invenção das lantejoulas teria sido, no mínimo, por volta do décimo quarto
século antes de Cristo. No entanto, leio em outras fontes que lantejoulas de
ouro foram também encontradas em escavações no Vale do Indo, no Paquistão, e
datadas de cerca de vinte e cinco séculos antes da Era Cristã. Portanto, tais acessórios
parecem ser ainda mais antigos do que pensa a jornalista.
Spivack comenta que lantejoulas de
ouro costuradas nas roupas poderiam ter vários significados: no caso das
vestimentas do faraó, preparação para um outra vida; ou então uma forma de
ostentar status e riqueza, um meio de
manter preciosidades junto de si para evitar roubo ou, ainda, a confiança no
brilho do metal precioso para afastar maus espíritos. Seja qual for o propósito
das numerosas lantejoulas de Tutancamon, esses singelos disquinhos brilhantes,
com um furinho no meio, acabaram por celebrizar-se como ornamentos de roupas. Talvez
por prever tal sucesso, Leonardo da Vinci - ele mesmo - projetou uma máquina de
fabricar lantejoulas, que consta de um de seus históricos desenhos no Codex Atlanticus, mantido na Veneranda Biblioteca
Ambrosiana de Milão. Ninguém sabe se a engenhoca funcionaria, porque nunca foi
construída. Mas é reconfortante imaginar que o grande Leonardo também se dava a
uma fuleiragem de vez em quando...
A articulista prossegue comentando o advento do uso decorativo das lantejoulas e, en passant, menciona o nome do empreendedor Herbert Lieberman, que
fez fortuna nos Estados Unidos desenvolvendo progressivamente novos métodos de
fabricação das pecinhas, incluindo o uso de gelatina em folha antes da segunda
guerra mundial, bem como uma parceria temporária com a companhia Eastman Kodak
para emprego de folhas de acetato, até chegar ao processo atual de fabricação
em vinil.
Como sói acontecer com a moda,
ultimamente observa-se um retorno febril de paetês e lantejoulas como ornamento
de roupas. Mas, para começo de conversa, navegando pela Internet cheguei ao site de uma agência de modelos, a qual
ensina que paetê é uma lantejoula simplesinha, enquanto lantejoula é...paetê
mais decoradinho. Vejam que maravilha! Já a onipresente Wikipedia reza que um
tecido bordado com lantejoulas é...paetê (do francês pailleté). E por que essa transcendental polêmica intrigou o
cronista? Porque, na minha infância, costumáva-se assistir pela televisão aos
concursos de fantasias do carnaval, onde figuras antológicas como, por exemplo,
o museólogo Clóvis Bornay, o figurinista Evandro de Castro Lima e a vedete Wilza
Carla pontificavam nas categorias luxo ou originalidade com suas intrincadas
vestimentas ricas em plumas e...paetês. E eu que, quando criança, achava que os
tais paetês das fantasias de “luxo” eram pedras preciosas, aprendi mais uma
nesta altura da vida.
Mas, que diabo tem isso a ver com o
Ano Novo, pergunta a gentil leitora à beira da exasperação. É que, na esteira
do revival dos acessórios
carnavalescos, o que mais aparece por aí é conselho para as madames capricharem
nas lantejoulas em seus vestidos de festa, a começar pelo Reveillon, no
qual acredita-se ser de bom tom brilhar intensamente. Lantejoula no vestido,
lantejoula no sapato, lantejoula na bolsa, em todo lugar. Essa febre parece ter
começado no ano passado e agora estende-se à decoração do próprio local da
festa. Estamos em plena era da lantejoula que, a continuar assim, acabará por
superar a crise financeira mundial como definidor da década.
Mas há algo mais a ver com o Ano
Novo. Roberto Rodrigues, em uma oficina na Estação das Letras, ensina que a
crônica deve, sempre que possível, incluir alguma reflexão sobre aspectos
sociais, psicológicos ou filosóficos da condição humana. Então, aí vão dois.
Primeiro, concordo com Emily Spivack ser uma pena que o processo de fabricação
de lantejoulas com gelatina não tenha sobrevivido. Pois, como lembra a
estilista inglesa Christa Weil, “a ausência de lantejoulas conta histórias”,
referindo-se a uma passagem de um livro que descreve marcas de mãos humanas
impressas em vestidos de baile antigos, na forma de uma falha na cobertura das
lantejoulas. Christa comenta que dificilmente se encontra modo mais romântico
de arruinar um vestido. Já o descarado cronista abaixo-assinado, pensando no
que costuma rolar em tantos Reveillons por aí, fica a imaginar os lugares onde
se encontraria falhas na cobertura de lantejoulas de gelatina em vestidos contemporâneos.
Por fim, ocorre-me que lantejoulas
coloridas podem ser pregadas em qualquer pano barato e promover a ostentação de
um falso luxo, tal como nos carnavais de outrora. Vistas de longe, lantejoulas
metafóricas facilmente brilham na imagem de coisas e gentes que, no fundo, não
passam de pano barato. Destarte, é preciso atenção aos ornamentos, nesta época de
Ano Novo e a qualquer tempo em que tanta gente planeja, promete, jura e, com
frequência, jamais cumpre grandes desígnios que se transformam afinal em
pequenezas, as quais não passam da superfície e desaparecem facilmente ao
toque das mãos mornas de quem quer que se aproxime.
Portanto, Feliz Ano Novo!
Rafael Linden
Que leitura maravilhosa... parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Anônimo(a), volte sempre!
ExcluirR
Incrível como o autor consegue associar informação e arte (puramente) literária... Muito bom o texto, aliás, muito bom o blog... Um prato cheio pra quem curte e valorizar a arte da leitura.
ResponderExcluirMuito obrigado pelo incentivo, Claudio.
ExcluirR
Adorei a sua crônica de Ano Novo! Tão leve e brilhante como as lantejoulas... Mas acho que paetê é diferente de lantejoula. Tinha a impressão que paetê eram tubinhos curtos de vidro, usados junto com as lantejoulas e as miçangas para enfeitar os vestidos elegantes usados em festas como reveillon e baile de 15 anos ( ainda existem???).
ResponderExcluirbj
Eliana
Eu não sou especialista no assunto (...), as únicas definições que achei na Internet foram aquelas. Mas admito que minha cultura nesse assunto é superficial...
Excluir:-)
Olá Rafael,
ResponderExcluirSou fã dos textos escritos por você.
O último parágrafo foi, como se dizia antigamente, uma bofetada com luva de pelica, ou melhor, de lantejoula na cara de muita gente que vive de aparências. Com destaque para "não passam da superfície e desaparecem facilmente ao toque das mãos mornas de quem quer que se aproxime." LINDO !!!
JU
Obrigado, JU.
Excluirbjs
Rafael
Rafael querido, uma delicia de leitura como sempre!!! Feliz 2013!!!!!
ResponderExcluirBeijo grande
Carmem
Obrigado, querida. Um ótimo 2013 para você também, cheio de sucesso.
ExcluirBeijo
Rafael