Nos anos 60, usava-se cabelo comprido, amava-se os Beatles e os Rolling Stones, sofria-se com a censura e a repressão política. Não havia Internet e a informação andava devagar. Apesar de frequentar bons colégios, eu não sabia direito o que era um cientista. Achava, como quase todo mundo, que era um ser estranho, de óculos (eu uso), barba (eu tenho), cabelo branco (também), cara amarrada (isso não), que pensava e fazia coisas que os outros jamais entenderiam.
Em 1970 passei no vestibular para a
Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, então chamada
Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Era o primeiro passo
para uma boa carreira em hospitais, clínicas, consultórios. Porém, tinha um
gambá no meio do caminho…
Um dia, ouvi uma palestra de um
professor do Instituto de Biofísica, chamado Carlos Eduardo Rocha Miranda. Ele
discorreu sobre os mecanismos da visão, que nos permitem enxergar, interpretar
imagens e perceber a natureza dos objetos diante dos olhos. Tudo com base em
estudos experimentais, em que a função do córtex, a parte mais nobre do
cérebro, era investigada através do registro de fenômenos elétricos. E ele
falou sobre sua idéia de pesquisar os mecanismos da visão no gambá. Gambá??!!
Havia razões. Este marsupial é uma
espécie que manteve a estrutura do sistema nervoso relativamente inalterada
durante milhares de anos de evolução e, portanto, permitia ter uma idéia de
como eram os mecanismos da visão nos ancestrais dos mamíferos modernos. Taí,
pensei, sabia-se pouco sobre a evolução da visão e, sem perceber, fui tomado
por aquela proverbial e irresistível atração pelo desconhecido.
O professor avisou que havia vaga
para estágio de iniciação científica em seu laboratório, no segundo andar do
velho prédio da Faculdade, na Praia Vermelha. Era minha chance de aprender como
surgem novos conhecimentos.
Fui recrutado. Quatro
pesquisadores (entre eles eu, o novato), liderados por Carlos Eduardo, se
revezavam durante dias seguidos registrando fenômenos elétricos com
instrumentos que, em geral, só se via em oficinas de eletrônica.
Amplificadores, osciloscópios, gravadores eram conectados a um fio de
tungstênio isolado com vidro, com uma ponta finíssima, chamado “eletrodo”,
fincado no cérebro do gambá. Este, por sua vez, dormia placidamente
anestesiado, como numa cirurgia comum, enquanto um de nós projetava imagens
sobre uma tela à frente dos olhos do animal. Testávamos como a apresentação de
formas, cores e movimento na tela alterava a atividade elétrica das células
nervosas, os neurônios, para entender como a informação sobre o mundo visível é
codificada pelo cérebro.
Eu trabalhava à noite, junto com um
argentino que estava na pós-graduação. Depois de muitos dias e noites de
experimentos, seguidos de meses de análises e reuniões, aprendemos muito. Ao
contrário do que cientistas norte-americanos diziam, demonstramos que as primeiras etapas de processamento da informação pelo córtex cerebral
do gambá são semelhantes às de gatos, macacos e seres humanos.
E daí? Essa informação, inédita na época, contribuiu para o que conhecemos hoje
sobre a visão nas diversas espécies. E nós, no Brasil dos anos setenta,
avançáramos mais do que os norte-americanos na compreensão deste aspecto da
Fisiologia Comparada!
Mas, para mim, o momento decisivo
deste projeto foi quando, um dia, lá pelas três da madrugada, eu estava registrando
a atividade de uma célula e não conseguia descobrir as formas e movimentos
capazes de ativá-la. Até que resolvi experimentar uma imagem de forma
triangular, que os trabalhos publicados na época (pelos americanos, é claro)
diziam ser ineficaz para esta parte do cérebro. Para minha surpresa, a célula
foi vigorosamente ativada pela movimentação do triângulo. Parece uma
brincadeira, mas eu descobrira que alguns neurônios, naquela região do córtex cerebral do gambá, acumulavam propriedades funcionais nunca antes descritas
no mesmo local do cérebro nas outras espécies. Não era uma revolução no
conhecimento. Mas foi minha primeira descoberta científica. Um achado que foi
confirmado em outros experimentos nas semanas seguintes. E que forneceu uma modesta contribuição para entender como evoluiu a capacidade do sistema visual processar a informação sobre a forma dos objetos no espaço. Ao longo de anos de trabalho, o conjunto de vários estudos, feitos por cerca de uma dúzia de pesquisadores do Instituto de Biofísica, colocou o gambá, antes desprezado como primitivo, no "mapa" da pesquisa sobre visão nos mamíferos, como se dizia na época.
Por menor que seja, não há sensação como a da descoberta. Eufórico, chamei meu colega para confirmar meu achado, enquanto
manobrava a imagem projetada na tela. Adrenalina corria abundantemente nas
minhas veias. Eu me tornara o domador daquele neurônio e descobrira, através de
um experimento, algo que ninguém sabia. E que só saberia pelo relato que, pouco
depois, nosso grupo de pesquisa publicou em uma revista científica
internacional.
Foi há quarenta anos. Depois daquele
neurônio, vieram outros. Formei-me em Medicina, mas optei por uma carreira
acadêmica. Minha pesquisa hoje é, principalmente, sobre a neurodegeneração,
isto é, a morte dos neurônios que ocorre no sistema nervoso em certas doenças ainda
incuráveis. Porém, de meu primeiro projeto de pesquisa, ficou a marca indelével
daquela pequena descoberta. Uma célula que, inesperadamente, era ativada pelo
movimento de um triângulo aos olhos de um gambá. A revelação de um minúsculo
fragmento da evolução da visão nos mamíferos. Naquela madrugada eu me senti,
pela primeira vez, um cientista.
Rafael Linden
Parabéns pelo texto e pelo blog!
ResponderExcluirQuando puder, visite-nos também: "Diálogo Livre" (http://livredialogo.blogspot.com.br/)
Saudações,
Obrigado, M.S. (todos os outros Farias tem nome completo, menos o MS?...). Eu já tinha visto o Livre Diálogo, gosto muito dos textos da série "Olhos negros desconcertantes".
ExcluirA primeira descoberta a gente nunca esquece! Rsrsrs
ResponderExcluirCom este excelente texto conhecemos um pouquinho mais de você. Obrigada por compartilhar conosco tão importante momento da sua vida, de maneira descontraída e bastante interessante.
Eu é que agradeço
Excluirbjs
R
A leitura do texto me trouxe muita satisfação e a certeza de que você seguiu o caminho certo. Ainda bem que um gambá estava no meio de seu caminho, com direito à mesma fama da pedra que ficou no caminho do poeta.
ResponderExcluirUm abraço
Obrigado, Dr. Igor. De fato, ao contrário do que se pensa, tropeçar em pedras soltas no caminho pode ser uma benção.
ExcluirGrande abraço
Rafael