Ainda que vosso cronista predileto tenha
lá suas opiniões, crenças e mitos políticos prediletos e não se furte ao dever
cívico de manifestá-los em horas e locais apropriados, a cláusula pétrea, de
que tal coisa não se faz no sacrossanto espaço deste blogue, continua a ser plenamente
justificada pela disenteria verbal de que somos vítimas nestes tempos de
campanha eleitoral. No entanto, tudo que se passa no mundo serve de inspiração
e, a propósito, a vida lá fora sempre nos enseja uma boa oportunidade de apelar
para outros eventos entre o quais, como se diz por aí, até mesmo a escatologia “dá
uma crônica”.
Pois não é que o conhecimento científico
da humanidade foi, há poucos dias, enriquecido com o trabalho de um grupo de
cientistas que preconiza o uso de pílulas de fezes congeladas para tratamento
de um tipo particular de infecção intestinal? Volte aqui, cara leitora, porque
é coisa séria. Ou melhor, seriíssima. Para começar, saibam todos que o trabalho
foi publicado no JAMA, a revista de alta qualidade da Associação Médica
Americana, por pesquisadores das Faculdades de Medicina de Harvard e Tel-Aviv, os
quais trabalham em dois dos melhores hospitais do mundo, localizados - sem
trocadilho – na cidade de Boston. Sim, nada disso garante que o trabalho seja
bom, mas continue a ler e verá que tem lógica e é importantíssimo.
A tal infecção intestinal é causada por um
microorganismo que, de cara, já ostenta o ameaçador nome de Clostridium difficile. Seu pacote de
maldades causa uma disenteria gravíssima, que leva os pacientes a usar o
banheiro até 30 vezes por dia e pode ser fatal. É bom que nossa multidão de
ávidos leitores saiba que essa infecção é mais comum quando a flora intestinal
normal – ou seja, as bactérias do bem que todos temos em nossas respeitáveis tripas
- é dizimada por mau uso de antibióticos. Pois é, minha senhora. As bactérias
vivem a competir umas com as outras por sobrevivência e quando as bactérias do
bem morrem, bactérias do mal podem ocupar facilmente os ambientes em que a
natureza lhes oferece alimento e abrigo. Esta é uma das principais razões pelas
quais ninguém deve tomar antibióticos sem orientação médica, muito menos quando
são desnecessários.
Antes de prosseguir, advirto que faço o
possível, mas trata-se de uma matéria difícil de abordar com nossa delicadeza
habitual. Voltando ao assunto, como a tal bactéria do mal é muito resistente
aos antibióticos disponíveis, há alguns anos existe um tratamento baseado na
competição pela sobrevivência. Consiste em introduzir fezes de uma pessoa
saudável no tubo digestivo do paciente, para que bactérias do bem colonizem maciçamente
o intestino e, com isso, derrotem as bactérias do mal. Mas até agora esse
tratamento tinha de ser feito com – tenham paciência – fezes frescas, em geral
de um parente da pessoa doente e, para injetar a poção mágica, era necessária a
introdução de um tubinho vindo, digamos, de lá ou de cá, no tubo digestivo do
paciente. Crianças, por favor não tentem fazer isso em casa.
Então, como este procedimento, além de
difícil de descrever com um mínimo de boa educação, é sujeito a efeitos
adversos e requer ambiente hospitalar, os cientistas inventaram o que só pode
ser descrito como pílulas de cocô. É isso mesmo, cápsulas feitas com o mesmo
material que envolve muitos outros medicamentos, contendo no interior fezes
congeladas de doadores saudáveis, selecionados por critérios rigorosos e
submetidos a diversos exames para garantir que o material seja de primeira, ou
seja, contenha uma flora bacteriana todinha do bem. As cápsulas ficam
congeladas até o uso e, com isso, o tratamento pode ser feito em consultório
médico ou na casa do paciente. Simples assim.
A boa notícia foi que as cápsulas
funcionaram em noventa por cento dos casos testados, mais ou menos a mesma
proporção de pacientes nos quais funciona aquele tratamento complicado! E
nenhum paciente vomitou, apesar de engolir 30 daquelas cápsulas em dois dias. O
leitor rabugento já nos telefonou pelo menos quatro vezes, dizendo que este blogue
está ficando cada dia mais nojento, mas o fato é que se trata de um avanço no
tratamento de uma infecção grave e potencialmente fatal. E antes que o Juquinha
comece a guardar o que não deve em sacos plásticos no congelador da geladeira
da avó, deve-se notar que os pesquisadores foram cautelosos e advertiram que
será necessário confirmar os resultados em estudos mais amplos, além de verificar
se não haverá efeitos adversos a longo prazo.
Ufa, diz a nossa querida leitora, aliviada
porque pensa que acabou a tortura. Mas ainda resta o momento nostalgia. Há uns
cinquenta anos, o músico e comediante Juca Chaves tinha, entre suas máximas,
uma pérola de sabedoria que dizia ser “melhor dividir com os amigos um prato de
morangos do que comer sozinho um prato de me*!@”. Se tudo correr bem, haverá pelo
menos uma circunstância em que os morangos ficarão em segundo lugar.
Rafael
Linden
Muito boa a crônica, como sempre. Parabéns! Vamos dividir o morango, se for possível.
ResponderExcluirObrigado, Ana. Também espero poder sempre escolher dividir os morangos.
ExcluirBjs
R
Olá Rafae
ResponderExcluirComo sempre muito interessante seu texto. Gosto muito.
Abçs
Janda
Obrigado, Janda.
ExcluirBjs
R
Adorei o texto, me lembro muito a palestra do professor Ivan Araujo no workshop de obesidade que teve no fundão. Se não me engano, ele havia dito que havia um experimento em que eles trocavam a flora intestinal do roedor obeso por uma flora de roedor saudável e, com isso, havia alguma mudança na aceitação de dietas menos calóricas. É interessante pensar que essa relação com uma população de bactérias intestinais causa mudanças na nossa expressão gênica e define parte do nosso ser.
ResponderExcluirObrigado, Diego. Volte sempre.
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