Vejo nos olhos
marejados da gentil leitora a emoção de reencontrar este humilde cronista,
depois de quatro interminávei semanas. Vossa fênix ressurge incólume das cinzas
de um mês atulhado de compromissos inadiáveis, para deleite dos fãs e, é claro,
para o inevitável muxoxo do notório resmungão que nos persegue desde sempre.
Estavam com saudades? Aguardavam ansiosos a última insanidade a ganhar a nuvem,
diretamente do borbulhante e desconexo cérebro deste que vos escreve? Podia ser
pior, acreditem. Imaginem-se a descobrir que o próximo livro de seu escritor
predileto – escritor mesmo, não eu – estará à sua disposição apenas em 2114.
Sim, senhora, daqui a cem anos.
Ha, ha, coisa nenhuma. Pois em agosto de
2014, Katie Paterson, uma artista escocesa residente em Berlim, deu a largada
para seu projeto que consiste em, a cada ano, encomendar um livro inédito a
um escritor de renome, até um total de cem escritores. Parece uma mera proposta editorial que,
eventualmente, será assumida sucessivamente por empresários mais jovens ou pelos
descendentes da moça. Mas não, isso seria trivial. O busílis – lembram do
busílis? - é que esses livros serão trancafiados num espaço especialmente
reservado em uma biblioteca pública na Noruega, onde ficarão expostos, fechadinhos
e proibidos para leitura até 2114, quando finalmente serão liberados para os
leitores. Sim, senhora, daqui a cem anos.
Livros que só serão lidos daqui a cem
anos, artista nascida na Escócia, residente na Alemanha, projeto na Noruega.
Viram no que deu a União Européia? Coisa de doido, né? De cara, há quem diga
que em pouco tempo os espertofones, tabletes, realidades virtuais e o escambau
eletrônico tornarão obsoletos não só o livro, mas qualquer coisa escrita em
papel. Já outros lamentam o crescente desinteresse da galera pela respectiva língua
pátria a começar pelas vogais, ao que parece condenadas ao ostracismo – por
falar nisso, vcs td blz? Sem falar numa frase que não existia há algumas
décadas e se tornou comum na mudernidade
– pô, cara, não tenho tempo pra nada, não leio um livro desde que entrei na
faculdade! Apresso-me a esclarecer que os compromissos inadiáveis que
mantiveram o cronista nas sombras por um mês incluiam, principalmente, escrever
projetos. Na língua pátria. E, raios me partam, com versão em inglês também.
Mas, voltando ao que interessa: sim,
senhora, daqui a cem anos. Coisa de doido. Ou não?
Pois a escocesa, que é muito conceituada por
seus projetos visuais meio esquisitos para o meu gosto pessoal, conquistou como
primeira escritora de seu ambicioso projeto nada menos do que Margaret Atwood,
uma canadense que, aos 75 anos de idade, já escreveu dezenas de livros, ganhou
mais de 55 prêmios - entre os quais o Booker Prize, um dos mais prestigiosos da
literatura mundial - e foi homenageada por dezenas de universidades, incluindo
Harvard. Como se não bastasse, Margaret inventou uma engenhoca robótica para
que um autor possa autografar livros e conversar via tabletes com leitores à
distância. Há controvérsias sobre essa invenção, mas não se pode acusar a
escritora de saudosismo ou tecnofobia. Ainda assim, em lugar de arquivar seu
livro na nuvem, ela fez questão de comprar papel especial de arquivo para que seus originais não deteriorem com o tempo.
A esta altura, o leitor rabugento resmunga
que não apenas é coisa de doido, mas a loucura atravessou o Oceano Atlântico. Será?
Aqui no telhado, por princípio não posso
me dar ao luxo de estigmatizar coisa alguma. Então, pensando bem, esse projeto é
muito simpático. Minha própria carreira como cientista sempre foi voltada para
pesquisa fundamental, aquela que contribui para o conhecimento e não tem prazo
para virar um produto. Na história da Ciência, dessa categoria de pesquisa saiu
muito que não valia nada ou foi provado falso ao longo do tempo. Mas também
inúmeros conceitos formulados há décadas, séculos, são válidos ainda hoje e o
serão até prova em contrário. Da mesma forma, ao contrário do festival de
porcarias de consumo imediato que empesteia as livrarias modernas e mal dá
espaço para a literatura verdadeira, obras escritas há décadas, séculos e
milênios ainda hoje são lidas, admiradas ou veneradas. Portanto, não há nada estranho
na previsão de um público para os exemplares do projeto, que ganhou o título de
“biblioteca do futuro”.
O filósofo George Santayana dizia que
“quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”. De fato, depois de
tanto tempo de civilização, é cada dia mais difícil inventar algo de novo e quem
aspira à originalidade precisa conhecer o legado de seus antecessores. De outra
forma, como saber se o que sai de sua cabeça ou de suas mãos é de fato
original? Ainda cética, pergunta-se então a gentil leitora, se não é um contrasenso
encomendar e guardar livros em papel, sem saber se serão lidos, em plena era da
proteção das árvores do planeta. Nisso a escocesa pensou, e para produzir o papel
a ser usado na antologia estão sendo plantadas mil árvores em um bosque nas
cercanias de Oslo. O resmungão pergunta “e a tinta?”. Não sei.
E se de fato até lá se concretizar a
profecia do fim dos livros em papel – na qual, entristecido e preventivamente
nostálgico, lamento acreditar -, o que será do projeto? Há pouco tempo, a voz
de Thomas Edison, gravada no fonógrafo que ele inventou em 1878 foi recuperada
por cientistas norte-americanos. Não resta dúvida de que, em 2114, haverá
tecnologia suficiente para transpor os textos deste projeto para qualquer meio
que venha a substituir o que será então “aquela tralha obsoleta de
espertofones, tabletes e computadores de outrora, que estão expostos no museu que
fica perto da casa do Zé naquele asteróidezinho”. Sim, senhora, daqui a cem
anos.
O mais interessante neste projeto é exatamente
o mistério insondável. Por mais que autores como Margaret Atwood e outros
luminares que venham a ser convidados para escrever seus livros tenham
seguidores fiéis, gente que leu todos os seus livros, é intrigante imaginar o
conteúdo desta coleção. Esse mistério é muito peculiar, porque é provável que
nenhum de nós, escritor e leitores deste blogue, leremos esta antologia. Bem,
sabe-se lá...Seja como for, isso já justifica que se chame a “biblioteca do
futuro” de um projeto de arte, e não apenas uma empreitada editorial.
No filme que Margaret Atwood gravou sobre
o projeto, e justificando que o contrato obviamente impede a divulgação de
qualquer informação sobre o conteúdo de sua obra, a escritora comentou,
candidamente: “É muito otimismo acreditar que, daqui a cem anos, haverá
pessoas, que estas pessoas ainda lerão, que estas pessoas estarão interessadas
em abrir as caixas e ler os livros, e que nós escritores serermos capazes de
nos comunicar com estas pessoas”.
Sim, senhora, daqui a cem anos. A pergunta
que não quer calar é se, do jeito que andam as coisas, ainda haverá pessoas. Mas, cá para nós, a aventura
humana e as habilidades que nossa espécie desenvolve ao longo de sua história
só tem valor quando miram o futuro.
Rafael Linden
Estava com saudades Rafael. Mas sei bem que a ausência era por uma boa causa. Continue escrevendo por aqui. Abraço, Luiza
ResponderExcluirObrigado, Luiza. Acho que todos estivemos fora do mar pelo mesmo motivo...
Excluir:-)
abraços
Rafael
Olá Rafael,
ResponderExcluirAdorei!
Será que não há aqui uma tentação de genialidade/imortalidade neste projeto? Se eu for muito bom daqui a 100 anos continuarão a ler-me; se eu não for muito bom, mas estiver neste projeto, daqui a 100 anos não estarei esquecido...
beijos
Helena
Não deve ser fácil entrar para o time dos convidados, mas acho que você tem razão.
ExcluirOi querido,
ResponderExcluir:)))) Mario Quintana já dizia que "o futuro é uma espécie de banco ao qual vamos remetendo, um a um, os cheques de nossas esperanças. Ora, não é possível que todos os cheques sejam sem fundo".
É, foram dias intensos estes! Bon retour sur le toit!!!!
Bises
CG
Merci!
ExcluirTudo bem na Cidade Luz?
Bjs
Oui, très bien, merci! :)
ResponderExcluirEstamos super adaptados já e incorporando o idioma mais e mais. Encontrei umas ruelas ao redor da Sorbonne repletas de livrarias e sebos, estonteante! :) Bjs e inspiração!!
Aproveite!
Excluirbjs
R
Show de bola!!!!!!
ResponderExcluirObrigado, Anônimo. Volte sempre!
ExcluirR
Olá, Rafael! Seu texto, como sempre, atraente e peculiar.
ResponderExcluirMinha opinião: nada vai substituir uma leitura que dispensa bateria.
Beijo grande!
Obrigado, querida. Eu gostaria de ser mais otimista, mas continuo torcendo pelo bom e velho livro livro (como diz o anúncio da Ikea...).
Excluirbeijos
R