Neste ano da
graça de 2013, mais precisamente em 26 de dezembro, fará cem anos desde que o
jornalista e escritor norte-americano Ambrose Bierce desapareceu. Isso mesmo,
sumiu, evaporou, escafedeu-se. Já ouço aquele leitor ranzinza a resmungar “lá
vem mais uma daquelas inutilidades”. Não é de bom tom um cronista bem-educado sequer
pensar em sugerir ao rabugento o mesmo destino do ianque. Au contraire. O escritor tem o dever de, humildemente, pedir à sua
platéia, inclusive aos raríssimos ranhetas, que continuem a ler, pois algo de útil
poderá aparecer. Portanto, assim o fazemos, humilde que somos.
Mas quem era
o tal Ambrose, antes de desaparecer? Assinou diversas colunas em jornais da
California e, além disso, escreveu principalmente contos. O mais famoso foi
publicado em 1890 com o título “Um acontecimento na ponte de Owl Creek” e
tornou-se um clássico dentre histórias curtas inspiradas na guerra civil
norte-americana, da qual o então jovem Bierce participou como militar do lado
da União. Uma adaptação deste texto tornou-se um dos últimos episódios da série
de TV “Além da Imaginação”.
Entretanto,
Ambrose Bierce ficou famoso mesmo com a obra publicada em 1906 sob o título “O
livro das palavras de um cínico” e, em 1911, rebatizada como “Dicionário do diabo”.
Esta é uma pretensa “obra de referência”, na qual o autor “definiu” palavras e
expressões com fina ironia, subvertendo o significado de dezenas e dezenas de
verbetes com seu humor ácido e crítico. Consta que ele começou a
escrever os tópicos satíricos em 1875 e alguns dos mais antigos vem sendo
redescobertos e acrescentados a novas edições do livro. Uma tradução para a
língua portuguesa foi publicada em Lisboa, pela Editora Tinta da China. Outra
no Brasil, pela Mercado Aberto, de Porto Alegre. Millor Fernandes ensaiou um similar
nacional com 20 verbetes, sob o título “Dicionário Irrefletido”, em sua coluna
na revista Veja de 30 de janeiro de 2008, mas ficou nisso.
No dicionário
do diabo há definições deliciosas como, por exemplo: “Intimidade, s.f. Relação a que são providencialmente arrastados os tolos
para destruirem-se mutuamente”; “Homem,
s.m. Um animal tão absorto no êxtase contemplativo do que acredita ser, que não
dá sequer uma olhada no que indubitavelmente poderia vir a ser”; “Nepotismo, s.m. Prática que consiste em designar sua
avó para um cargo público pelo bem do partido”; “Paciência, s.f. Forma menor de desespero, disfarçada em
virtude”; “Perseverança, s.f. Virtude
inferior através da qual a mediocridade alcança um sucesso sem glória”; “Política, s.f. Conflito de interesses fantasiado em luta
de princípios”; “Reflexão, s.f. Processo
mental pelo qual obtemos uma visão nítida do passado, estando aptos a evitar
perigos pelos quais não passaremos novamente”; “Santo, s.m. Pecador morto, revisto e editado”. E muitas outras.
Curiosamente,
há mais de trinta anos anos deparei-me, pela primeira vez, com uma destas “definições”
numa nota de rodapé de um capítulo de livro escrito pelo cientista britânico
Lawrence Weiskrantz, que foi chefe do departamento no qual fiz meu
pós-doutorado em Oxford. Larry, como todos o chamavam, era um notável especialista
em percepção e memória e tinha excelente humor que, frequentemente, inseria em
suas palestras e publicações. Foi numa dessas que, a título de blague, para
ilustrar a dificuldade de planejar experimentos rigorosos e objetivos na área
de cognição, lembrou a definição da mente humana, uma de minhas prediletas no dicionário
do diabo. O verbete se traduz mais ou menos assim: “Mente, s.f. Misterioso tipo de
substância secretada pelo cérebro. Sua principal atividade consiste no esforço
em determinar sua própria natureza, tentativa esta que tem sido infrutífera
devido ao fato de não dispor de outro instrumento para se conhecer além de si própria”. Cá
pra nós, até colegas que se dedicam à pesquisa em cognição e comportamento
humano hão de convir que Ambrose Bierce tinha um talento excepcional para a
sátira.
O que terá
acontecido com o escritor depois que, em 26 de dezembro de 1913, enviou a um
amigo sua última carta, cuja autenticidade é, aliás, contestada? Dali em
diante, nunca se soube de seu paradeiro, em que pese uma enxurrada de
explicações e testemunhos inverossímeis. Na ocasião, Ambrose tinha 71 anos de
idade e estava, ao que tudo indica, nas imediações de Ciudad Juárez, na
fronteira do México com os Estados Unidos. Supostamente acompanhava como
observador as tropas rebeldes de Pancho Villa, que lutavam na provínicia de Chihuahua
em plena Revolução Mexicana. Há uma ironia perversa na história de que um
ex-militar, com larga experiência em situações belicosas, simplesmente sumiu quando,
presumivelmente, se dedicava a procurar subsídios para relatar o andamento de
operações de guerra.
Por outro lado,
considerando as idas e vindas da Revolução Mexicana, com suas múltiplas
lealdades de ocasião, alianças políticas e militares estabelecidas e rompidas
em curto espaço de tempo, as quais logo se transformavam em ódio feroz, bem
como eventos tortuosos que desafiam a compreensão deste humilde cronista, resta
a possibilidade de que Bierce tenha resolvido desaparecer por conta própria,
desapontado pela incapacidade de incluir no seu dicionário um verbete bem-humorado correspondente
aos acontecimentos daquele sangrento e confuso episódio da história do México.
Rafael Linden
Se este mesmo escritor americano vivesse em nossos dias,e escrevesse seus tópicos satíricos e definisse em seu dicionário do diabo TV GLOBO [Abreviatura de televisão].Inútil e imoral que só expõe matérias de caráter duvidoso ou ainda Golpista. [De golpe+ -ista]Homem, ou grupo de homens ou empresas ávidos(as) pelo poder com instinto de animais selvagens.
ResponderExcluirTalvez, prezado Anônimo, mas acho pouco provável. A sátira não é privilégio de um dos lados em um debate, qualquer que seja sua natureza. Bierce foi um conservador. Entretanto, deve-se notar que, por paradoxal que pareça hoje em dia, naquela época os republicanos eram muito mais progressistas do que os democratas. E Bierce sempre assinou seus textos...
Excluir:-)
Texto no mínimo curioso... quanta informação! Bacana!
ResponderExcluirObrigado, volte sempre.
ExcluirRafael
Vi O “Dicionário Irrefletido” do Millor!
ResponderExcluirMuito bom, pena que ficou restrito aos 20 verbetes.
ExcluirR
Interessante o cara Rafa.
ResponderExcluirMas eu não entendi bem a sátira em “Mente, s.f. Misterioso tipo de substância secretada pelo cérebro. Sua principal atividade consiste no esforço em determinar sua própria natureza, tentativa esta que tem sido infrutífera devido ao fato de não dispor de outro instrumento para se conhecer além de si própria”.
E, por alguma dessas razões da mente ... rsrs ... me lembrei do Livro dos Insultos do Menken. Você já leu?
Não li o livro dos insultos, mas vou procurar. Fiquei interessado...
ExcluirAbs
Rafael
LOuco isso mano....
ResponderExcluirSumiu há apenas 100 anos... pode ser que ainda apareça! rsrs
ResponderExcluirAinda está em tempo de recuperar o corpo....
Excluir:-)
Muito interessante.
ResponderExcluirAna Maria
Obrigado, Ana Maria. Volte sempre!
ExcluirRafael
Texto bem divertido, fiquei curioso para saber qual seria a definição de "Amor" e "Hipocrisia" também, provavelmente, verbetes bem ácidos.
ResponderExcluirProcurei pelo "Dicionário Irrefletido" e encontrei outros dicionários do Millôr - http://www2.uol.com.br/millor/dicionario/007.htm . O dicionário etimoLógico é muito engraçado.
Obrigado pelo comentário e pelo link, Diego. VOlte sempre.
Excluirabs
Rafael
Interessante.
ResponderExcluirEncontrei na Internet por 80 dilmas...
Um dos últimos que ainda se encontra, nem sei se a editora Mercado Aberto ainda existe.
ExcluirObrigado pela visita.
R
Bierce era profundo conhecedor do Oculto, e seus contos provam isso. Bierce não morreu, colocou seu corpo físico em estado de jinas, em outra dimensão. É possível fazer-se isto, eu mesmo já fi-lo, e fi-lo porque qui-lo! eh eh eh eh!
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