quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A volta das cores no mundo cinzento

            Faz quase dois anos da chegada oficial da pandemia de COVID-19. E chove lá fora. Um dia cinzento, num mundo descolorido pelo vírus que nos trouxe incertezas e perdas de conhecidos e desconhecidos. Cá do telhado costumamos oferecer, aos nossos poucos e bons leitores, Ciência e Humor entrelaçados. Mas enquanto a bonança não vem, recorra-se ao léxico e mestre Houaiss nos lembrará que, pela ordem, antes de “comicidade em geral” Humor significa “estado de espírito ou de ânimo”, sem adjetivos. Daí sequer nos desculparmos ao confirmar que, nesse primeiro parágrafo, hoje reina o mau humor. Mau e cinzento, como se não houvesse futuro, não coubesse esperança e estivessem as cores para sempre perdidas.

            Só que não. Pois, de guarda-chuva aberto, aqui celebramos uma nova conquista da Ciência. Regozijamo-nos ao ler que, depois de um século cinzento, cores perdidas ressurgiram em obras de arte do reinventor do beijo. Saudosistas pra lá de maduros se apressarão a achar que falamos de roteiristas ou diretores de “O vento levou” ou “Casablanca”. Ledo engano. Décadas antes, o pintor austríaco Gustav Klimt declamara, em tela estática, um poema sem estrofes que celebrava o beijo como a mais valiosa de todas as manifestações humanas, majestosamente decorada em ouro.

            Porém, se hoje numerosas e multicoloridas obras do artista podem ser apreciadas em museus, galerias e telas de computadores, há aquelas que se perderam ao longo do tempo. Talvez algumas, em segredo, ainda enfeitem salões de abastados, mas outras se foram definitivamente. Entre elas, três pinturas que Klimt produziu a partir de 1894, como parte de uma encomenda do Ministério da Educação da Áustria. O contrato era destinado à decoração do teto do anfiteatro da Universidade de Viena, fundada no século XIV e alma mater de Freud, Boltzman, Mahler, Popper, Schroedinger e outras sumidades. 

Pois em pleno alvorecer do século XX, não é que os líderes da vetusta e respeitabilíssima entidade educacional repudiaram o vanguardismo de Klimt e exigiram que ele reformulasse as obras para um estilo tradicional! O artista ainda tentou suavizar, mas acabou se dando conta de que a capitulação não combinava com sua liderança da moderna e desaforadíssima Secessão Vienense. Daí mandou tudo às favas, graças ao socorro financeiro do seu patrono August Lederer, que devolveu o dinheiro adiantado pela Universidade e, provavelmente, ganhou um bom desconto ao comprar as pinturas. Essas, no entanto, junto com toda a coleção Lederer foram confiscadas de sua viúva pelos nazistas, armazenadas no Castelo de Immendorf por volta de 1943 e acabaram destruídas por um incêndio, ao que tudo indica proposital, em meio à retirada dos soldados alemães no último dia da segunda guerra mundial.

            Daquelas obras, intituladas MedicinaFilosofia e Jurisprudência, ficaram apenas relatos escritos e fotografias em preto e branco, prova de sua existência e, por muitos anos, emblema de tristeza e curiosidade de leigos que pouco sabemos da obra de Klimt até especialistas inconformados com a perda dos originais. Acontece que, por maior que seja a preocupação de adolescentes ou seus familares quanto à necessidade de uma profissão definida que lhe garanta o caviar de cada dia, o futuro não só chega sem roteiro mas teima em surpreender os incautos. E, como num conto de fadas, a combinação de habilidades de Franz Smola, curador do Museu Belvedere de Viena, e Emil Wallner, engenheiro da Google, levou a um feito extraordinário, a ressurreição do colorido das pinturas. 

Guiado por Smola, um especialista que conhece profundamente cada período das obras de Klimt, o engenheiro Wallner compilou informações provenientes de relatos da época e digitalizou centenas de milhares de fotos e dúzias de reproduções coloridas de outras pinturas do artista, datadas do período em torno da encomenda da Universidade. Os dados foram submetidos a um algoritmo, isto é, um conjunto de procedimentos que levam a uma solução lógica, desenvolvido por Wallner para uso da tecnologia de aprendizado de máquina em um computador poderoso. Assim conseguiu deduzir a cor mais provável para cada “pixel”, ou seja, cada pedacinho da pintura. A junção de campos aparentemente tão distantes na árvore do conhecimento tornou possível recompor cada detalhe das imagens e “recolorir” as pinturas. 

Isso tudo vem sendo abundantemente divulgado pelas midias, e quem quiser encontrará a história completa desta aventura extraordinária, bem como as imagens coloridas das três obras, em portais do Smithsonian Institute, do Google, do Museu Metropolitano de Nova Iorque, além de uma enxurrada de reportagens em jornais. A casa é sua, pensem o que quiserem. Mas, para finalizar, permitam-nos abrir uma cortina metafórica para, tão somente, celebrar o retorno das cores depois de oito décadas em que alegorias da Medicina, da Filosofia e da Jurisprudência permaneceram cinzentas. Encharcado de chuvas e receios em escalas que vão do municipal ao universal, tragédias que nos deixarão marcas por um tempo que nos parecerá infinito, ainda assim prefiro pensar que, eventualmente, o algoritmo certo nos levará de volta a um futuro colorido. 

            

              

Rafael Linden

6 comentários:

  1. Muito felizes com o retorno do Cientista...esperando que luzes de esperança iluminem nosso país envolvido pelas nuvens sombrias das trevas.
    Que o espirito criativo e colorido de Klimt traga energia para nosso Cientista no Telhado ajudar na necessaria resistência .

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  2. Bom regresso, se isso não significar que estamos andando para trás como país...

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  3. Vamos todos subir no telhado para olhar o mundo deste cientista !

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