Daqui do telhado ouve-se a melodiosa
voz da leitora consternada, a lamentar a insanidade que assola a confusa mente
deste modesto escriba. Que raio de título é esse? Mal sabe ela que o abantesma no
topo do texto significa quase um ano, faltando meras dez horas. Sim, sim,
sabemos que a explicação não mitigou sua estupefação. Quem sabe nos próximos
parágrafos? Afinal, do que se trata? Pois lá vai, aos pouquinhos como de
hábito.
Há duas décadas estreava na Broadway
o musical Rent (“aluguel” no idioma
de Shakespeare), criado pelo dramaturgo Jonathan Larson. A peça remete à ópera La Bohème, de Puccini, por sua vez inspirada
no livro Scènes de la vie de bohème
(“Cenas da vida boêmia” no idioma de Molière), de autoria de um certo Henri
Murger com base em sua vida de escritor pobre em Paris no século XIX. Rent conta a história de sete artistas
que lutam para sobreviver e perseguir seus sonhos na Nova Iorque dos anos 1980,
num cenário de desemprego, drogas, liberação sexual e AIDS. A peça é
considerada um divisor de águas neste estilo de musical, foi laureada não
apenas com o Tony Award, mas também
com o prêmio Pulitzer de Teatro, que
colocou o autor na companhia de grandes dramaturgos norteamericanos, como
Tennessee Williams, Arthur Miller, Edward Albee e outros. As tragédias fictícias
dos personagens, no entanto, carregam a amarga ironia de que, aos trinta e
cinco anos de idade, Larson foi vítima de um aparente erro médico em dois
hospitais de Nova Iorque e morreu quatro dias antes da estréia consagradora da
peça em um dos principais teatros da cidade.
Uma das canções emblemáticas de Rent chama-se “Temporadas de amor” (Seasons of love). Nela se pergunta como mensurar
um ano na vida de alguém, para concluir que, entre várias opções, pode-se – ou
deve-se – usar como unidade de medida o amor. A letra começa com o verso “quinhentos
e vinte e cinco mil e seiscentos minutos”, correspondente a um ano - faça a
conta, rabugento, e não atrapalhe a poesia com bissextos ou relógios atômicos.
Ah, agora sim, vislumbra-se uma razão para aquele título esquisito, não é
mesmo? Só nos falta explicar o que são os tais zeptosegundos. É simples, basta
lembrar que uma hora tem sessenta minutos, e cada minuto tem sessenta segundos.
Quem tem alguma simpatia por Matemática chama de milissegundo um milésimo de
segundo, enquanto um milionésimo de segundo é chamado de microssegundo. A
senhora acha que um microssegundo passa rapidinho? Pois um zeptossegundo dura
exatamente um trilionésimo de bilionésimo de segundo. “Trilionésimo de
bilionésimo” parece doença do fígado, mas na verdade é uma fração muito, muito,
muuuuuuuito pequena de um segundo.
Hoje em dia a cronometragem das corridas de
velocidade, como os cem metros rasos, exige câmeras e equipamentos eletrônicos sofisticados
para registrar com precisão o tempo de um recordista. Diferenças entre
medalhistas de ouro, prata e bronze com frequência são da ordem de alguns centésimos
de segundo, um tempo curto demais até para a platéia ter certeza de quem venceu
a prova até sair o resultado oficial. Imagine então a petulância de alguém que
pretendesse medir um intervalo de tempo de, digamos, uns oitocentos ou
novecentos zeptossegundos. Pois não é que cientistas da Alemanha, Áustria e
Espanha, deixaram de lado um caloroso debate sobre a supremacia gastronômica de
bratwurst, Wiener schnitzel ou paella
Valenciana e quebraram o recorde? Isso mesmo, o time liderado pelo
cientista Martin Schultze, do Instituto de Óptica Quântica de Garching, na
Alemanha, conseguiu medir o tempo necessário para um fóton arrancar um elétron
da órbita de um átomo do gás Hélio. Não se assustem com a aparente complexidade,
essa coisa se traduz como o tempo necessário para uma quantidade mínima de
energia expulsar um componente minúsculo de um átomo. O tempo para ejeção do
elétron foi calculado em cerca de dez mil zeptossegundos, com uma precisão de mais
ou menos oitocentos e cinquenta zeptossegundos. Não se amofinem com detalhes,
basta acreditar que se trata de um evento muito, muito, mas muuuuuuuito rápido
mesmo. Tanto que o trabalho destes cientistas, publicado na prestigiosa revista
Nature Physics, vem sendo festejado
como uma façanha respeitável no ramo da Mecânica Quântica, porque deve abrir oportunidades
para novas descobertas sobre as propriedades fundamentais de tudo o que existe
no Universo.
Para chegar ao resultado o grupo se
valeu de tecnologia de ponta, incluindo lasers
sofisticadíssimos, uma câmera que faz o que profissionais chamam de
“fotoluminescência resolvida no tempo”, e um monte de equações e estatísticas. Acabaram
conseguindo a medida mais precisa de um fenômeno físico feita até hoje no
contexto do chamado “efeito fotoelétrico”, a descoberta que deu a Albert
Einstein o prêmio Nobel de Física em 1921. Pois é, caros leitores, na nossa santa
ingenuidade, em geral achamos que o linguarudo foi premiado por desenvolver a célebre
teoria da relatividade, da qual até o rabugento já ouviu falar. Ledo engano. A
Academia Sueca fez questão de enfatizar que o que consideravam a mais
importante contribuição de Einstein era “a lei do efeito fotoelétrico”. Fazer o
que, né? Se houver uma enquete entre os leitores para descobrir qual é a mais
bela composição de Tom Jobim, muitos discordarão do resultado, seja qual for.
Melhor deixar de lado as batalhas acadêmicas e aceitar que, mesmo que apareça coisa
ainda mais espetacular ainda essa semana, a medida feita pelo grupo do Schultze
foi porreta.
E assim, sem sofrimento, a gentil
leitora percebe que seu cronista predileto não está completamente gagá. O
título lá de cima é inusitado, mas foi por uma boa causa. Serviu para prender a
atenção de quem chegou até esse último parágrafo e, como bonus, ainda terá a
oportunidade de degustar mais um de nossos devaneios. Desta vez sobre o tempo,
que permeou esta crônica desde os zilhões do título, passando pelos vinte anos
de Rent, dezenove séculos de Cristo a
Murger, trinta e cinco anos de Larson, quatro dias entre sua morte e a estréia
da peça, meio milhão de minutos na canção, mili, micro e zeptossegundos. Como
dizem os franceses, tout passe, tout
lasse, tout casse et tout remplace...Na velocidade do efeito fotoelétrico, no
ritmo dos anos ou ao longo das eras geológicas, com o tempo tudo passa. Até as
agruras que andamos sofrendo, aqui ou alhures, cada um na sua medida. Às vezes a
persistência deste sofrimento parece durar quatrilhões de trilhões de séculos.
Mas sempre se pode usar outras unidades de medida.
Rafael Linden
"Que raio de título é esse?" <3
ResponderExcluir;)
:-)
ExcluirCaríssimo , desta vez você se superou!!!!!! Tentei entender até pelas leis da Biofísica mas..... confesso: zeptosegundos é demais para a minha modesta inteligência!
ExcluirPois é, é pouco tempo para tanto espanto!
Excluir:-)
Beijos